Um obscuro objeto ronda os momentos em que me ponho a escrever. Como quase sempre, a promessa é que a argila indicará o caminho da mão e aí veremos do que se trata. Melhor assim, em vez de pensar que faz falta um bom assunto – ou um baita assunto –, que estou a requentar abobrinhas, ou ainda, que ando lendo menos do que deveria, entre outros trânsitos neuróticos conhecidos. Silêncio e um pouco de coragem: eis a receita da infância para tatear no escuro.
Por falar em infância, há poucos dias estive em Porto Alegre para visitar meu pai, que havia passado por um procedimento de saúde. Por sorte, percebi nele um entusiasmo enorme, muita vontade de viver mais e, além disso, a imagem da cicatriz de um peito que foi aberto, desta vez, não de forma metafórica. Situação delicada, sensível e, agora, o transporte à imagem-corpo que tenho de meu pai me levando escada acima, enquanto eu estava entre a sonolência e o fingimento do sono. Eu precisava daquele colinho – meu coração perto do coração de meu pai –, então, melhor dormir.
Imagem-corpo é o que digo quando das sensações vivas e presentes da infância, que são tão ou mais táteis do que visuais, ainda que possam compor algo de uma figura. Esta, que ora relato, é uma das lembranças que meu corpo guarda sobre ser amada, um dos lugares para visitar psiquicamente quando as coisas não estão tão bem. Meu pai não sabe, mas é nessa lembrança que o encontro. Eu bem que gostaria, mas não posso colocar essa sensação em um museu. Contudo, posso escrever e dar contorno a essa lembrança e fazer dela parte de meu acervo pessoal.
Por falar em museu, há menos dias, aqui em Santa Fé, estivemos no primeiro dia de um ciclo de palestras sobre Jorge Luis Borges realizado no Museo Rosa Galisteo. Não sou boa conhecedora da obra borgeana – vamos melhorando, espero! –, mas me impressionou muito a questão do estilo de intertexto de Borges com as margens de seus livros, algo que ainda não havia tido notícias. Achei muito curioso encontrar neste autor um hábito do qual já tive mais vergonha do que orgulho: escrever nas margens. Toda essa atividade de escrita-pesquisa supostamente ajudou Borges na composição de inúmeras obras. Segundo os pesquisadores – que usaram como corpo documental os livros que Borges doou à Biblioteca Nacional Mariano Moreno, sediada em Buenos Aires – Borges escrevia enquanto lia, algumas vezes de forma errática. Ao que tudo indica na investigação, a marginália ganha todo o seu protagonismo e vai ao centro da obra do autor. Instigante!
Por falar em margens, é difícil não pensar em nossas periferias abandonadas ou sob o comando de poderes paralelos. Então, surge outra questão de memória da semana, desta vez aliada à justiça: a condenação de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz pelo assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Muito bem, a volumosa condenação dos assassinos pode ajudar para chegarmos a saber mandantes e motivações. Oxalá! Só assim vamos chegando mais e mais perto também do centro dessa história.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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