Em 2024, completo nove anos que me separam a existência de “dois Glaucos diferentes”. O primeiro teve uma trajetória “linear” até os 41 anos. Infância, juventude, curtições, uma jornada profissional iniciada aos 19 anos, viagens, afetos, conclusão dos estudos até graduação em Jornalismo, perda do pai e da avó paterna num curto intervalo de seis meses, em 2002; novos rumos de carreira, casamento… Esses e tantos outros acontecimentos registrados de 1974 a 2015. São tantos fatos que se torna impossível condensar tudo em curtas linhas, mas talvez esse seja o modo mais simples de ilustrar o “surgimento” de uma nova face ou característica da minha vida a partir do nascimento do meu filho Murilo, em 2015.
Sua “concepção” antecedeu a sua existência física para mim e Rochele, e “curou dores”. A perda do meu pai Manoel me remeteu ao grande poeta e sambista João Nogueira, que na música “Espelho”, recitou os seguintes versos: “Eh, vida à toa, vai no tempo, vai, e eu sem ter maldade, na inocência de criança de tão pouca idade, troquei de mal com Deus por me levar meu pai…” A dor da perda de um pai criado sem a sua presença paterna e pela minha avó, Maria Antônia, uma mulher preta, diarista e semianalfabeta – como tantas outras neste país – me calou fundo durante muito tempo.
O sentimento de desejar ter um filho, mas sem ter mais a quem perguntar “o que e como fazer” alguma coisa ou mesmo a impossibilidade de colocá-lo no seu colo e dizer “esse bebê é a nossa continuidade e legado”, foi doloroso. Mas coube ao Murilo “tratar a ferida” e rememorar como fui criado pela “minha cabaça” formada pelo meu pai Manoel e minha mãe Joselina. A ausência da figura paterna não impediu o meu pai de exercer a seu paternar com afeto, carinho e de indicar “caminhos” na presença física e ancestral. Ele “rompeu” com uma linha de perdas por morte daqueles que vieram antes e estabeleceu a sua presença na criação que abarcou a mim e minha irmã Glaucia.
O paternar foi e é o que fez “surgir” esse “outro Glauco”. Que ressignifica a vida, rediscute o papel do machismo estrutural tão danoso e presente na sociedade, aprende com tantos outros pais, sejam eles solo, hétero ou homoafetivas, diversos como um todo.
Destaco os meus amigos-irmãos negros, que (re)aprendemos os caminhos dos afetos, do carinho, da presença de forma aquilombada. Nós que precisamos viver e contrariar as estatísticas que apontam que a taxa de mortalidade dos homens negros com idade entre 12 e 29 anos, quando comparada à dos brancos é 3,5 contra 0,9, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
As nossas existências precisam ser encaradas como políticas e a paternidade negra deve ser vista como um exercício do resgate do amor, do cuidado, de quebra de paradigmas, de novos significados, de aprendizagem e de resistência.
Que o paternar seja um desses símbolos, entre tantos outros, de uma formação de gênero desapegada da brutalidade e “reconstruída” pelos afetos.
Glauco Figueiredo Santos é jornalista com 20 anos de atuação profissional e atua no segmento de Comunicação Corporativa. É estudioso e atuante da temática DE&I com recorte pilar racial, parentalidade e história afro-brasileira. Ele é o criador do perfil @omowale_br e integrante da Comissão Antirracista do Colégio João XXIII (Porto Alegre). Glauco é pós-graduando em “História da África e da Diáspora Atlântica” Latu Sensu do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), em parceria com a FGE-SP.
Foto da Capa: Freepik
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