O instituto da paternidade socioafetiva surgiu para reconhecer que a forte relação afetiva existente entre um pai ou uma mãe com alguém que amam ou consideram um filho ou filha, e vice-versa, independente do vínculo biológico, pode caracterizar a paternidade ou maternidade fundamentada no afeto.
A paternidade socioafetiva tem seu fundamento legal no artigo 1.593 do Código Civil, que determina que o parentesco pode ser consanguíneo ou de outra origem, e também no princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º da Constituição Federal (CF), que abarca o direito das pessoas serem tratadas com respeito, com igualdade, e também no disposto no § 6º do artigo 227 da CF, que determina que “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Esse instituto visa o reconhecimento de uma situação real de paternidade ou maternidade, ainda que não tenha acontecido a adoção formal durante a própria vida do pai ou da mãe. Visa que seja respeitado o direito à busca da felicidade, o reconhecimento de uma condição social, de uma história de vida que precisa ser respeitada, em razão da realidade fática que se sobrepõe à realidade formal.
A “afetividade” é reconhecida como caracterizadora da paternidade, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, desde o Código Civil de 1916, quando houver a posse do estado de filho”, ou seja, o vínculo parental em favor de quem utilizasse o nome da família, fosse tratado como filho, e fosse visto como tal na sua comunidade. Esta posse de filho é imprescindível para que exista a filiação socioafetiva, não basta apenas a demonstração de carinho e afeto pelo filho de outra pessoa. Ele precisa ser reconhecido de forma pública e contínua como filho.
Esse instituto ganhou muita força após a CF de 1988, e especialmente após o julgamento, com repercussão geral, pelo STF, do RE 898060, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017), reproduzido parcialmente abaixo:
“Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do Direito de Família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB). Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes.
1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem.
2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo.
3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade.
4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).
5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.
6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.
7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.
8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).
9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como instituição que também se por vias distintas do casamento civil (ADI n.º 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).
10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade.
11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser.
12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio).
13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.
14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina.
15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).
16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (RE 898060, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017) (grifei)
O reconhecimento da parentalidade socioafetiva pode ocorrer por meio judicial ou por meio extrajudicial, dependendo do caso. Obviamente, a discussão judicial sobre o reconhecimento da paternidade socioafetiva impedirá o reconhecimento extrajudicial.
Atualmente, o CÓDIGO NACIONAL DE NORMAS DA CORREGEDORA NACIONAL DE JUSTIÇA – FORO EXTRADUCIAL (CNN/CN/CNJ-EXTEA), aprovado pelo Provimento n.º 149 de 30/08/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estabelece a partir do seu Art. 505 as normas aplicáveis à parentalidade socioafetiva.
Dentre as diversas regras estabelecidas por este Código, saliento que:
– caberá o reconhecimento extrajudicial voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas com 12 anos de idade, e ele será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais;
– o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade será irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação;
– poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva de filho os maiores de 18 anos de idade, independentemente do estado civil;
– não poderão reconhecer a paternidade ou a maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes;
– pretenso pai ou mãe será pelo menos 16 anos mais velho que o filho a ser reconhecido;
– paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente;
– o reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva poderá ocorrer por meio de documento público, ou particular, de disposição de última vontade, desde que seguidos os demais trâmites previstos neste Capítulo.
Embora o acórdão do STF, acima parcialmente transcrito admita a pluriparentalidade, o Art. 510 deste Código deixa claro que o reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento, e que somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno. Para haver a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, o processo de reconhecimento deverá tramitar pela via judicial.
Vale salientar recente julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, em que é ressaltada a necessidade da prova da posse do estado de filho para ser reconhecida a paternidade socioafetiva.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM C/C HABILITAÇÃO EM INVENTÁRIO. POSSE DO ESTADO DE FILHO. COMPROVAÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. Para que se configure a filiação socioafetiva, além de o pretenso pai ter de ocupar e desempenhar, na vida do pretenso filho, o lugar e a função de pai, cumprindo, afetuosamente, os deveres de sustento, guarda e educação, deve confessar, no meio em que vive, que é pai daquele, o qual passa a gozar, neste contexto, da posse do estado de filho, ensejando ao reconhecimento de vínculo parental socioafetivo. A prova carreada aos autos demonstra a exteriorização da convivência familiar e da afetividade entre os autores/recorridos e o falecido, bem como a demonstração perante a sociedade da relação pai/filhos. Destarte, diante da prova da implementação dos requisitos da posse de estado de filho, a manutenção da sentença é medida que se impõe. APELAÇÃO CÍVEL DESPROVIDA. (Apelação Cível, n.º 50000604420178210061, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Ricardo dos Santos Costa, Julgado em: 22-03-2023)
O mero carinho, cuidado, guarda e afinidade, e até mesmo o chamamento de filho esporadicamente, não é suficiente para caracterizar a paternidade socioafetiva. Há de haver a posse contínua do estado de filho.
Infelizmente o entendimento equivocado que toda relação de afeto, de carinho amor, de cuidado e de ajuda matéria pode caracterizar uma paternidade socioafetiva, faz inclusive com que muitas pessoas tenham receio de ter a guarda de uma criança ou adolescente em casa, e nessa condição serem obrigados a reconhecê-los como filhos, o que repercutiria na herança daqueles que realmente são filhos, sejam biológicos ou adotados.
Na maioria das vezes, crianças ou adolescentes são acolhidos por solidariedade apenas. Obviamente, o vínculo afetivo é forte, mas isso só não caracteriza uma filiação, é muito comum, por exemplo, tios e sobrinhos se adorarem, mas seguem sendo tios e sobrinhos. A filiação é algo mais profundo. Algumas pessoas amam muito aqueles que ajudaram a criar ou criaram, chegam a fazer testamentos para eles ou em que eles sejam também beneficiados junto com outros herdeiros, mas isso só não caracteriza o estado de posse de filho. Se essas pessoas quisessem realmente reconhecê-los como filhos, poderiam ter feito esse reconhecimento extrajudicialmente ou até mesmo por testamento.
Gostaria de saber a sua opinião a respeito, comente no espaço para comentários abaixo, aqui do site do Sler.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
Todos os textos de Marcelo Terra Camargo estão AQUI.