No dia 17 deste mês foi aprovada pelo Senado a Proposta de Emenda Constituição 45/2023 (PEC 45/2023), também chamada de PEC das Drogas, com um placar esmagador de 52 a 9 votos, em segundo turno, a favor da criminalização do porte e posse de substância ilícita de entorpecentes.
E como na letra do sensacional Gonzaguinha, “chega de tentar, dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais para ocultar”, não dá para ignorar que as relações entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF), não vão nada bem. Essa PEC 45/2023, assim, como outras que estão a tramitar, e que tentam limitar os poderes do STF, demonstram claramente o descontentamento dos legisladores com a mais alta corte do judiciário, por estarem julgando assuntos que para muitos integrantes do legislativo deveriam ser tratados pelo Congresso Nacional.
Impossível negar que a PEC 45/2023 foi uma reação do Senado à retomada do julgamento pelo STF sobre a descriminalização do porte da maconha para uso pessoal, que já conta com ao placar de 5 a 3 a favor da descriminalização do porte da droga para uso pessoal. Na própria justificação da PEC 45/2023 consta que:
“O motivo desta dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las. Com efeito, o traficante de drogas aufere renda – e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território – somente por meio da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um usuário final. Essa compreensão vem sendo desafiada no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 635.659/SP1, que se encontra sob julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), e que teve sua repercussão geral reconhecida (Tema 506). Resumidamente, trata-se de um recurso em que o recorrente busca sua absolvição tendo como causa de pedir a declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, de 2006 (Lei Antidrogas). Até o presente momento, há quatro votos favoráveis ao provimento do RE.
Com efeito, o prosseguimento do julgado (RE 635.659/SP) aponta para uma declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, de 2006. Esta Proposta de Emenda à Constituição visa a conferir maior robustez à vontade do constituinte originário, na esteira dos dispositivos anteriormente elencados, ao prever um mandado de criminalização constitucional para as condutas de portar ou possuir entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Essa medida, uma vez promulgada, daria respaldo à validade do art. 28 da Lei nº 11.343, de 2006.”
Importante ressaltar que, para que a PEC 24/2023 seja aprovada, ela também precisará ser aprovada pela Câmara dos Deputados, pois a Constituição Federal (CF) prevê que uma proposta de emenda à CF será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
Leio muita gente criticando, elogiando ou falando sobre a PEC 24/2023, muitas delas baseadas em notícias de jornais, prós ou contra, mas que talvez não conheça conteúdo dessa emenda constitucional. Assim, considero importante esclarecer que o texto inicial dessa PEC informa que ela visa alterar a CF para prever que “a lei considerará crime a posse e o porte independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Por mais que esse confronto com o STF possa ter também razões políticas, para mim está claro que a votação não foi um mero ataque ao STF ou até algo para deixar o poder executivo em uma situação delicada em razão do conflito entre os dois outros poderes. A criminalização ou descriminalização de drogas é um assunto polêmico e sensível em diversos países, e que divide muito a sociedade brasileira.
Drogas nas ruas
Em 15 de agosto de 2006, quando ia para o trabalho pela avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, olhando para a praia, pela janela do ônibus em que estava, testemunhei um jovem, português, de 19 anos, ser esfaqueado diretamente no coração porque segurou sua mochila para que um “craqueiro” não a levasse. Vi que o craqueiro empurrou o rapaz, que caiu imediatamente. As poucas pessoas no entorno saíram correndo levantando a areia da praia, e também seu pai e sua mãe saindo do mar esbaforidos em direção ao filho morto. Logo depois, o ônibus arrancou rumo ao centro. Essa imagem vem com frequência a minha memória, e foi a cena mais triste que já vi. O “craqueiro” foi preso a poucas quadras dali, não sei quanto tempo ficou preso.
Sou realmente contra a liberação de drogas não medicinais que possam afetar a mente de qualquer pessoa. Todavia, de forma paradoxal, não sou contra o consumo de bebidas alcoólicas. Sei que, assim como para a maioria das pessoas, o consumo de drogas é inofensivo, muita gente alcoolizada já matou ou feriu pessoas, e o seu consumo não está proibido. Eu mesmo adoro beber um vinho, uma espumante, um licor, destilados, coquetéis, etc., mas faço isso com muita moderação. Tenho a sorte de ter esse autocontrole, que muita gente não tem. Mas um mau hábito legalizado, e já parte da cultura de vários países, não justifica a legalização de um outro.
Durante os 24 anos em que morei no Rio, me incomodava muito ver que nos fins de semana, na maioria das barracas (guarda-sóis) dos postos mais nobres de Ipanema, havia pelo menos uma pessoa branca, bem cuidada, fumando uma maconha, e nada acontecia com ela, só os pequenos vendedores, na maior parte pobres e afrodescendentes, se ferravam. A maioria dos consumidores eram moradores do bairro, ou eram pessoas que eu via nos bares e restaurantes badalados da zona sul frequentados pelas classes média e alta, e jamais eram abordados.
Como salientado na justificativa da PEC , não há tráfico de drogas sem interessados, a lei da oferta e procura é uma realidade. Aqueles que têm dinheiro podem se deliciar se for com moderação, enquanto que os de baixa renda ou nenhuma renda precisam se sujeitar ao rigor da lei para sobreviver ou apodrecer nos fétidos e perigosíssimos presídios brasileiros. Que sociedade cruel, elitista, indiferente e seletiva.
Se o uso de droga é um problema social, que pode causar psicoses, esquizofrenia, violência, um custo social expressivo, e até mesmo mortes indiretamente, que todos os participantes da transação comercial, ou seja, compradores e fornecedores de drogas, sejam responsabilizados da mesma forma. Se for para prender somente o pobre e mandá-lo para o inferno que é uma cadeia no Brasil, que então o uso e a venda de drogas sejam descriminalizados para todos. É muita dissimulação prender justamente quem mais sofre na pirâmide social, e está ali para servir quem dá causa ao comércio, e está no topo, e quer apenas “relaxar”, sentir uma “vibe”, curtir o momento “numa boa”.
Ao invés de prenderem os pequenos vendedores de drogas, pois geralmente os grandes chefões escapam, que o poder público leve para as comunidades escolas, hospitais para que os pais ou mães das crianças e jovens não morram esperando por um atendimento médico, que lhes proporcione segurança pública – para que eles não precisem se sujeitar aos traficantes ou milicianos -, infraestrutura, transporte para que eles possam acessar locais de trabalho mais facilmente, e que combata a corrupção que retira dos cofres públicos recursos que para eles fariam muita diferença.
Jogar somente os pequenos vendedores dentro presídios, sendo que o próprio STF reconhece que há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, uma violação massiva de direitos fundamentais, enquanto aqueles que incentivam e sustentam esse mercado, ficam fumando maconha na frente de todo mundo, sob o sol a pino de Ipanema ou Leblon, no Rio de Janeiro. É injusto, perverso, um descaso com o ser humano que não teve a sorte de nascer em uma família com estrutura financeira para colocá-lo em uma boa escola, para prepará-lo para um mercado de trabalho altamente competitivo. Não existe meritocracia quando se compete com alguém que não recebeu a mesma educação formal.
Cada pessoa que tire a sua própria conclusão a respeito, eu mesmo tenho sentimentos conflitantes com relação ao tema, reflita muito, e pense se cabe ao STF ou ao Congresso Nacional estabelecer regramentos, limites, criminalizar ou descriminalizar algo, mas não esqueça que pode haver uma inconstitucionalidade em razão de algo que de acordo com a constituição deveria ter sido normatizado pelo poder legislativo e não foi. Chamamos a isso de inconstitucionalidade por omissão, e nessas circunstâncias sorte termos o STF para regulamentar, ainda que provisoriamente, o tema em discussão.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
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