A proposta de Emenda Constitucional (PEC), a qual autoriza o Congresso Nacional a anular decisões definitivas do STF quando, na avaliação dos parlamentares “extrapolar limites constitucionais”, é matéria que está dando muito o que falar.
Para uma maior compreensão, cabe explicar que a PEC nº 50/2023, que tramita na Câmara do Deputados, faz parte de uma reação de grupos políticos conservadores do Congresso contra o STF, que considerou inconstitucional o marco temporal da terras indígenas, descriminalizou a maconha para uso pessoal, e que começou a julgar a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação.
Em que pese o ministro Luís Roberto Barroso, com a sua extraordinária elegância e oratória, tenha negado uma crise entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, a propositura de uma PEC com esse escopo, é um péssimo sinalizador da relação entre os poderes, e muito pior do que isso, se aprovada, um risco para democracia.
Para que uma democracia realmente exista é fundamental a divisão dos poderes políticos. A teoria da separação dos poderes, espinha dorsal da democracia, vem de Montesquieu, e suas ideias deram respaldo teórico para a Revolução Francesa. Há séculos já sabemos que sem a separação, o poder do Estado fica concentrado em poucas pessoas, muitas vezes um soberano ou ditador ou líder, o que caracteriza o absolutismo, ainda que não seja monárquico. Isso gera um Estado ainda mais injusto, concentrador de poder e riqueza, e aniquila qualquer ideal democrático, com os direitos e garantias individuais das pessoas, que foram detalhadamente listados na Constituição Federal brasileira. Não existe civilização sem uma justiça independente e efetiva. A justiça é um direito de todos.
Mas perceba que a surpreendente PEC nº 50/2023 tem o seguinte texto:
“Art. 1º O art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso: “Art. 49 – XIX – deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos, sobre projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do Supremo Tribunal Federal que tenha transitado em julgado, e que extrapole os limites constitucionais. Parágrafo Único. O Decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional e comunicado ao Supremo Tribunal Federal, com vigência imediata.”
Na justificação da PEC, consta:
“O estado democrático de direito se sustenta no princípio da independência e harmonia entre os poderes. Para que este princípio basilar seja assegurado é fundamental que exista respeito equilíbrio entre os poderes, isto se dá pelo sistema de pesos e contrapesos, ou seja, nenhum poder é soberano sobre o outro.
Uma vez elaborada e aprovadas as leis pelo legislativo e estando o executivo sujeito a observá-las e respeitá-las em sua missão de executar as políticas públicas, ficando ao judiciário a sublime função de julgar e assegurar o seu pleno cumprimento.
Porém não há que se falar em um “Poder Supremo” para o judiciário, mas antes em dever Supremo de assegurar o respeito às leis elaboradas por aqueles que detém o poder que emana do povo, “o poder de legislar em nome do povo”.
Assim, se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa decide e julga contrariando a própria Constituição e portanto a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco.
Desta forma, é fundamental que haja recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional
Por esta razão;
Considerando que, o ambiente cada dia mais tenso diante de decisões polêmicas e controversas, proferidas muitas vezes por um indivíduo em detrimento da opinião de milhões de brasileiros;
Considerando que, da decisão de todos os demais poderes da República em todas as instâncias cabe recursos, ficando apenas o Supremo Tribunal Federal imune a qualquer possibilidade de revisão.
Considerando que, não se coaduna com os princípios democráticos estabelecer “poderes supremos” a quem quer que seja.
Considerando que a “possibilidade” de revisão de decisões consideradas inconstitucionais, poderá, por um lado evitar injustiças e abusos de poder se revogadas e, por outro, fortalecer a convicção do acerto se mantido.
Considerando que, nossa proposta É ABSOLUTAMENTE CONSTITUCIONAL, pois não fere nenhuma cláusula pétrea, uma vez que não retira nenhuma prerrogativa do STF, mas tão somente acrescenta nas prerrogativas do Congresso Nacional os meios eficazes de assegurar sua competência, de preservar sua essencial prerrogativa de legislar como lhe é assegurado pela própria Constituição;”
Todavia, com todo o respeito aos integrantes do Poder Legislativo que apoiam essa PEC, entendo que se trata de uma PEC absolutamente inconstitucional. A este passo saliento que a Constituição Federal, expressamente prevê, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais”
Tais disposições são as chamadas cláusulas pétreas da CF.
Essa PEC, se aceita e não for declarada inconstitucional pelo próprio STF, fulminará diretamente essas duas vedações, pois além de ir contra a separação dos Poderes, os julgamentos que justificaram essa PEC, fundamentalmente foram decididos levando-se em conta os direitos e garantias individuais.
Ademais, está previsto na CF, que compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição. O que se vê com essa PEC é uma tentativa do Poder Legislativo interferir nos julgamentos do STF. Em última instância, o Congresso decidiria que mesmo que a mais alta corte jurídica do Brasil entenda que leis, ou ausência de leis que já deveriam existir, violam a CF, o Poder Legislativo poderia determinar que tais normas fossem cumpridas, ainda que inconstitucionais, que ferissem uma ou mais Cláusulas Pétreas. Seria uma injustiça qualificada, imposta por força do legislativo. Algo inadmissível em um estado democrático.
Fico pensando o que acontecerá se essa PEC vier a ser promulgada pelo Presidente da República, ou se na hipótese de ele não a promulgar, o legislativo proclamar sua existência? Quem resolverá esse impasse? Será isso bom para o Brasil? Será esse tipo de ato, um bom sinalizador para o investidor internacional?
Que triste Brasil vivemos, que momento perigoso para a democracia. Espero que essa situação se resolva o quanto antes, não podemos viver em um país sem justiça. O judiciário é sim um poder supremo, é ele que nos permite a civilização, não podemos voltar a época de Roma em que os chefes de governo e os senadores governavam de acordo com os seus pontos de vistas, violando toda sorte dos direitos do povo, que hoje são chamados de “direitos e garantias individuais”. A falta de controle por quem tem competência e conhece mesmo o direito, seria uma espécie de absolutismo imposto pelos que governam ou legislam.