Ser pedestre em uma cidade como Porto Alegre, em uma sociedade tão inclinada nos últimos anos ao neoliberalismo selvagem, é ser, inevitavelmente, definido pelo que você não tem: um carro. Não é que você tenha possibilidade de se deslocar sem ele, o que você tem. A questão central é que você não tem carro. E esse é o grande problema. O que importa no planejamento de qualquer alternativa de mobilidade urbana nesta que tem sido a cidade-laboratório do capitalismo tardio no Brasil, com direito à passagem recente pelo Paço Municipal de um prefeito com fortes conexões, ainda que informais, com o MBL, é o que você tem: dinheiro ou um carro. Se você não tem o último, a cidade automaticamente deduz que você também não deve ter o primeiro, então tem mais é que se ralar.
Um adendo necessário: esses dias fiz um texto sobre jornalismo e o debate sobre a exigência do diploma. Usei da ironia, recurso básico do kit de ferramentas de quem trabalha com texto em artigo opinativo. Nem sempre funciona pra todo mundo, dado que a ironia é um instrumento que precisa de afinação precisa ou não é captada. Mas meio que me dando um pouco de razão no espírito do texto, alguém compartilhou um trecho nas redes sociais e eu tive a perplexa surpresa de perceber que um outro jornalista, mais velho do que eu, cujo histórico inclui anos pendurado como líder sindical, não captou a ironia e achou que uma frase minha lá era séria. Logo, preciso estragar este texto já no segundo parágrafo dizendo que eu não acho que pedestre tem de se ralar, estou sendo irônico e debochado, e serei ainda mais no restante deste texto, e deve dizer alguma coisa sobre o estado da minha profissão quando gente vinculada ao sindicato dos jornalistas profissionais não capta ironia. Se o mundo é dos amadores, como eu também já escrevi, preciso reconhecer que é porque os profissionais não andam se ajudando. Fim do parêntese.
Quatro rodas e quatro patas
O debate urbano sobre mobilidade em Porto Alegre é meio viciado porque é obcecado com o número quatro: e muitas vezes você encontra o pessoal de quatro patas vociferando pelos privilégios perdidos das quatro rodas. Preste atenção e perceba o quanto a cidade é estruturada não apenas para privilegiar o carro, o que é um ponto de vista. Mas praticamente para que ele seja a única alternativa possível, com todas as repercussões inevitáveis dessa mentalidade.
À noite, a iluminação é mais intensa no leito das ruas – na calçada, se você estiver a pé, talvez o caminho pareça um tanto ameaçador mergulhado na escuridão de Mordor, onde as sombras se deitam, mas ninguém mandou você estar a pé, não é mesmo? Não tem carro? Pra que existe o Uber, essa plataforma que representa o melhor aprimoramento possível do capitalismo de serviços que vai dar a tônica do século XXI? Você é que está atrasado e ainda insiste em andar por aí com seu equipamento de locomoção default de fábrica há milhões de anos. Pra que o ser humano evoluiu e criou o automóvel?
Sendo pedestre em Porto Alegre há bem 30 anos, já passei por vários estágios da minha relação com a “cultura do automóvel” (uma cultura na qual eu já nasci imerso, uma vez que a opção pela rodagem em alta velocidade sobre asfalto não foi feita agora, e sim lá no meio do século XX). Já tive meus períodos de indiferença nos anos 1990. O número de carros era menor do que hoje e as linhas de ônibus naquela época eram um modelo – a frota era razoavelmente nova, havia ônibus circulando de madrugada, de hora em hora. Logo, quer usar carro, usa aí, eu evito daqui. Com o gradual, mas insistente aumento da frota, ficou mais difícil a convivência com a turma do volante. Porto Alegre certamente não é a Capital brasileira com o pior trânsito, os piores engarrafamentos nem mesmo com a pior geografia urbana para carros (acho um milagre não ter 20 atropelamentos por dia nas ruas diagonais de Belo Horizonte, por exemplo). Mas eu colocaria, empiricamente, o motorista porto-alegrense, com folga entre os três piores do Brasil. Não que falte a qualquer motorista brasileiro as características básicas do kit do motorista babaca: pouco apreço pela lei, senso de privilégio, falta de empatia, sensação de que sua pressa ou sua necessidade imediata justifica qualquer exercício de força bruta para fazer sua vontade prevalecer contra pedestres. Sim, estou na última das fases, aparentemente, motorista é meu inimigo não declarado.
Política
Mas parece haver uma certa necessidade porto-alegrense de transformar babaquice em política em diversas instâncias, o que leva a alguns alinhamentos automáticos muito curiosos. Não há motivo algum para ciclovia, por exemplo, ser uma pauta “de esquerda” (até porque muitas vezes é uma bandeira defendida por algumas das alas mais chatas e desconectadas da realidade dentro da esquerda). Mas no Brasil mexer nos privilégios do motorista é impensável para qualquer visão política de direita (sem falar no falacioso argumento brandido por estatísticos amadores vinculados ao ITC de que, porque ele passou pela ciclovia “e não viu ninguém”, ninguém está usando a ciclovia – como eu disse, debate de trânsito muitas vezes é discutido com quatro patas).
Ciclovias, quando implementadas na calçada, não parecem incomodar tanto – já, dispostas no leito da rua, são o fim da civilização. Porque na calçada você transfere o problema do cuidado para as duas categorias logo abaixo na cadeia alimentar: você preserva o espaço do carro e você elimina do horizonte a necessidade do motorista se preocupar com ciclista no “seu” espaço. Já o ciclista que cuide pra não atropelar pedestre, então (muitos não cuidam) e o pedestre que se vire. Ou se rale. A política urbana é tão consistentemente contra o pedestre que há uns anos a prefeitura transferiu a responsabilidade para o pedestre – ele que arrisque sua própria integridade enfrentando o carro fazendo o infame e comprovadamente inútil “sinal da mãozinha”.
O caso da mãozinha é engraçado porque ele é redundante e inútil. Serve para que você sinalize que precisa passar (como se você parado na beira da calçada não fosse sinal o bastante) e aposta numa civilidade que não se sustenta nem mesmo diante do sinal supremo de civilização no trânsito, a faixa de segurança. Se o cara não parou na faixa com gente passando em cima, que chances sua inútil mãozinha teria de despertar a consciência cívica do famigerado senhor volante?
Civilização
Uma faixa de pedestres é um dos elementos do mundo contemporâneo que mais ajudam a compreender como se constrói uma civilização. Fundamentalmente, a faixa é tinta branca pintada no chão em um padrão gráfico arbitrário. No entanto, ela demarca um espaço que, em teoria, oferece ao pedestre, elo mais fraco da cadeia do trânsito, segurança relativa. A faixa é só tinta, um sinal bidimensional que pretende criar uma zona de proteção tridimensional apenas com a força da convenção: não é um muro, uma grade, uma parede, mas ainda assim é imposta como uma zona de exclusão da lei do mais forte. A lei impondo uma convenção que regula relações díspares impedindo o exercício abusivo da força. Isso é elemento básico para a civilização. O resto é selvageria.
E o trânsito no Brasil, infelizmente, é regido pela leia do mais forte. Ônibus e caminhões jogam-se pra cima dos veículos menores, os veículos forçam sua presença para cima dos ciclistas, e aceleram para os pedestres, corre pra escapar, já que tu resolveu andar.
Há uma outra questão que eu chamo também de “empatia seletiva”. Crime de trânsito é o único crime no Brasil em que o autoproclamado cidadão de bem, de fato qualquer um, para e pensa e se coloca no lugar do criminoso refletindo que, “poxa, poderia ser eu”. Todo mundo “já exagerou alguma vez no trago e saiu dirigindo” ou “já ultrapassou alguns sinais, mas é que tem sinaleira demais nessa cidade”. Já você estar perto dos 50, como é o meu caso, e nunca ter tido um carro te transforma numa estatística curiosa porque de acordo com a política oficial de trânsito da cidade, isso só pode significar que você é um estorvo à livre circulação do tráfego na cidade, um loser que não tem noções de prioridade por não ter ainda comprado um carro, um panaca que interfere na circulação geral andando nesse diabo dessa faixa mesmo que o sinal esteja vermelho para automóveis.
Diabo, Porto Alegre é uma cidade em que um vereador fazia campanha para se eleger prometendo intervenção na EPTC para acabar com o “Pardal Faturador”, e, claro, encontrava grande ressonância numa parcela específica do público para quem o rigor punitivo é exagerado no caso do trânsito, e que o investimento deveria ser “em educação” (ser alguém desprovido de automóvel próprio me proporcionou várias oportunidades de ouvir motoristas de táxi e de Uber desfiar esse argumento na mesma corrida em que mais adiante vai defender “penas mais duras para a vagabundagem” – instância em que, aí sim, educação é “passar a mão na cabeça” e aí sim a punição volta a ser necessária)
Microcosmo
No início dos anos 2000, um dos grandes sociólogos brasileiros, Roberto DaMatta, estava coordenando uma pesquisa sobre a implantação do Código de Trânsito Brasileiro em Brasília e os motivos que levam o trânsito a ser como é no Brasil. Parte das conclusões seria sistematizada por ele no excelente livro Fé em Deus e Pé na Tábua: Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. Um dos insights é um bom resumo do que comentei até aqui. Sendo o trânsito um sistema de regras comum, simples e de conhecimento obrigatório por todos usado para disciplinar conflitos de interesses antagônicos, o trânsito funciona como um luminoso microcosmo de uma sociedade. E há uma correlação óbvia, portanto, entre como uma sociedade se comporta no trânsito com como ela se comporta no geral. Faz todo sentido. A regra é pra todo mundo. Uma emergência médica ou hospitalar é uma exceção aceitável. Você estar atrasado para o trabalho porque levantou tarde não é. Mas é muito mais provável que a segunda opção seja usada como justificativa para furar um sinal com pedestre em cima e tudo do que a primeira.
Logo, da próxima vez que você quiser saber o quanto algum dos seus interlocutores vomitadores de groselha de fato acredita em sua retórica, pergunte como ele reagiria a uma multa de um azulzinho.
Foto da Capa: José Cruz / Agência Brasil