Domingo era um dia agitado em uma casa com 7 crianças. Além dos 02 filhos biológicos, ainda mais 05 adotados, 14 cachorros e 7 gatos. Acabei de notar que 7 era um número cabalístico lá em casa: 7 crianças, 14 cachorros (7+7) e 7 gatos.
O café começava cedo com a criança responsável indo no armazém do seu Zé pra comprar pão. A mãe tinha uma cartolina com o nome das crianças e as respectivas tarefas semanais (limpar coco dos cachorros dentro de casa, limpar o pátio, lavar a louça, fazer a comida dos bichos, limpar os banheiros etc., etc.). As tarefas eram tiras de papelão encaixadas na cartolina, de modo que na segunda-feira elas eram substituídas por outras para ninguém se sentir prejudicado.
Normalmente vinham 02 pães de meio (pão francês de meio quilo), pois cacetinho (pão francês pequeno) era um luxo impossível numa casa com tanta gente. A primeira briga do dia: “-eu quero a ponta do pão, eu quero a ponta do pão”. A mãe dava 3 berros e aplicava a justiça do Talião dando as pontas para os que não tinham participado do embate. Uma vez todas as crianças tinham brigado, então ela deu a ponta pros cachorros. A justiça materna era bem sui generis e didática. Uma vez reclamei que raramente tinha salame italiano no café e eu não aguentava mais margarina. A mãe, sem levantar a voz, me mandou no seu Zé comprar um quilo de salame. Achei que era meu dia de sorte. Quando voltei ela me botou sentado num mochinho de madeira, do lado da casinha do Bará (entre outras tantas coisas ela também foi batuqueira!), onde ela me enxergava da cozinha, e disse: “-COME!”. Achei o máximo até 200 gramas quando perguntei se podia parar. A mãe tirou o chinelo, agitou no ar e repetiu: “-COME”. Com 500 gramas começaram as ânsias vômito, lancei um olhar de súplica e recebi um sorriso de canto de boca e ela balançando o chinelo no próprio pé. “-COME, QUERIA SALAME, ENTÃO COME.” 700 gramas, eu verde, o pessoal que tinha chegado pro almoço interveio e eu fui de castigo pro quarto, volta e meia indo no banheiro pra vomitar. Não comi salame por quase um ano, nem conseguia ouvir falar a palavra.
Nesses domingos, a casa sempre estava cheia, lá pelas 10h começavam a chegar os amigos da mãe, que nesta época já estava separada do pai. Eu ajudava a carregar os violões, gaitas, garrafões de vinho, caixas de cerveja e tudo mais que o filho mais velho está sujeito pelas leis dos anos 80.
Uma vez fomos numa Kombi para um concurso de pandorgas em Livramento, na fronteira do Brasil com o Uruguai. Crianças, pandorgas, galinha com farinha e Fanta-Laranja. Mas hoje não é sobre isso que vou escrever. Nessa viagem minha mãe conheceu um fornecedor que trazia whisky do Uruguai a preços camaradas. Então, nos domingos, sempre tinha a hora do whisky, um intervalo da cerveja e/ou do vinho, onde todos, em grande reverência, sorviam a bebida dos celtas enfeixando goles e elogios: “-faz diferença 20 anos”; “-o preço vale a qualidade”; “-no dia seguinte tu estás novo”; “-zero ressaca”… Certa feita, ao tentar uma nova encomenda, a mãe foi comunicada que o tal fornecedor tinha sido preso, inclusive isso havia saído na Zero Hora (nosso jornal local). Procuramos e achamos a reportagem: o sujeito algemado em um banheiro e, ao fundo, uma banheira de louça com o “puro brand escocês” e garrafas vazias de rótulos diversos esperando envasamento. O assunto whisky foi arquivado na casa da mãe.
Dificilmente o almoço de domingo era churrasco, era muita gente, com carne ficaria muito caro, então normalmente era carreteiro, massa, risoto ou Arroz de Puta. Arroz de Puta, segundo o Dicionário da Mãe da Língua Portuguesa, era um carreteiro feito com recheio de linguiça: pegava a linguiça, rasgava a tripa e misturava com o arroz. Puta era uma palavra meio coringa (curinga?) pra mãe, também utilizada para quando eu tentava vestir a roupa que recém tinha ganho: “-Tu é filho de puta pobre que não pode ganhar uma coisa e não sair usando?”. Perdi as contas das roupas que não me serviam mais quando ia usar depois do adiamento provocado pelo medo da maldição da puta pobre. Hoje mesmo ainda tenho de superar essa barreira a cada roupa nova.
Antes do almoço já começava a cantoria, eu adorava ouvir Negue do Nelson Gonçalves porque achava que minha voz grave (esquisita/desafinada) a interpretaria bem (ledo engano). Também tinha muita coisa em espanhol, samba, bolero e por aí vai. Era violão, bumbo legüero, gaita. A trilha sonora da minha vida foi construída naqueles domingos fagueiros.
A mesa da sala era grande, mas por óbvio não comportava tanta gente, então a mãe estipulou que a comida começava com a Mesa dos Inocentes, ou seja, das crianças, que depois de almoçar eram convidadas gentilmente a vazar e ir brincar na rua pros adultos comerem.
No verão, depois do almoço, o pessoal mais velho ia pro pátio lagartear, uns tomavam café, outros seguiam bebendo. Nos invernos, todo mundo se aglomerava perto do fogão à lenha cheio de cascas de laranja secando nas abas que eram usadas para facilitar o acendimento (não achava que ajudava, mas a mãe tinha posto isto na cabeça, então).
Uma vez de tarde começou uma briga de gatos no telhado e a mãe gritou: “-vai lá que tão matando”. Eu, o rei do telhado da casa da Glória, em segundos estava em cima da casa atirando galhos no gato invasor. Tinham muitos galhos em cima do telhado, porque o puxadinho da casa, que é onde ficávamos nos domingos, tinha sido feito em torno de uma árvore muito grande. Missão cumprida! Fui dar uma espiada do topo do mundo e, ao dar o próximo passo, o telhado afundou e cai de costas na sala. Sim, uma semana antes tinha caído um galho maior da tal árvore e deixado um buraco no telhado, que foi coberto provisoriamente com uma lâmina de telha. Eu não lembrava disso e pisei exatamente ali. Engraçado que cai no meio dos adultos cantando. Com dificuldades pra falar, por ter batido com as costas no chão, murmurava que tinha pisado no prego, o que no telhado significa que você andou sobre as madeiras e não sobre os vãos. A tia Sandra, que já tinha tomado todas, me revirava procurando o tal prego, pois ela achou que eu tinha pisado nele, enquanto eu gemia sem conseguir falar que não era desse tipo de prego que eu estava falando. Se me lembro me deram um chá (pqp, um chá!), não me levaram pro hospital, me deixaram repousando no sofá e voltaram pra cantoria. Máximas da mãe: “-Se não der atenção à tragédia, ela vai embora”.
A função recomeçava no meio da tarde com nova cantoria, mas, invariavelmente, era abortada de forma brusca quando o final do dia se aproximava. É como se todo o álcool que a mãe tinha bebido se evaporasse. Aquela que instantes antes era a cantora das multidões, se transformava num general alemão distribuindo ordens para todo o canto: “-Junta os copos, tira a mesa, lava essa louça, varre, passa pano, vai na venda”… No final do dia tomávamos café para não sujar muitas coisas, ser rápido e não atrapalhar a programação. Porque na noite de domingo tinha o Show de Calouros do Sílvio Santos.
Daí era todo mundo amontoado na sala da frente, crianças no chão ou cadeiras, mais velhos no sofá. O Programa do Sílvio Santos acontecia durante todo o domingo e o Show de Calouros era apenas um dos quadros, a propósito, era o quadro! Então começavam as propagandas do Tênis Montreal (“porque você é jovem”), Atroveran (“ai, ai, ai, como eu sofri, com uma cólica, quase morri, só vi que logo Atroveran tomei, a dor se foi, eu melhorei”), Pernambucanas (“não adianta bater, que eu não deixo você, nas casas Pernambucanas é que vou aquecer o meu lar”).
Então voltava o programa: lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá… O Sílvio Santos lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Pedro de Lara lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Décio Piccinini lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Aracy de Almeida lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Sérgio Malandro lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Elke Maravilha lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Mara Maravilha lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; Wilza Carla lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá; e no final… E o auditório lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, e lá, lá…
E começavam os calouros nos emocionando com suas músicas até serem interrompidos pela insuportável buzina da mal-amada da Aracy de Almeida, uma vilã odiada por todos, que sempre levava bronca do Sílvio. A mãe contava sempre que o Pedro de Lara tinha uma teoria que as formigas iriam invadir o mundo, mas nunca perguntei de onde ela tinha tirado isso.
O silêncio na sala era sepulcral, só risadas e o lá, lá, lá do início eram permitidos. Quem desafiasse o estabelecido, recebia a visita do chinelo voador. Ninguém me contou, eu vi: uma vez a mãe chutou no vazio, o chinelo se desprendeu do pé, ela o segurou no ar e o arremessou na minha irmã que estava atrás de mim. Ele passou pela minha franja, sem encostar no meu rosto, fez uma curva e deu na pleura da coitada. Ela ficou vermelha para chorar e a mãe só disse entre os dentes: “e.n.g.o.l.e o c.h.o.r.o s.e n.ã.o q.u.i.s.e.r. a.p.a.n.h.a.r m.a.i.s”.
Vinha o Ary Toledo, Show do Gongo, Isto é Incrível e mais calouros…
E assim acabava mais um domingo naqueles longínquos anos 80.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube