A última semana de dezembro realmente entrou para os livros de história.
E parece uma loucura encadear tantos assuntos potentes, mas segue o fio que você acompanhará meu insight…
Meu pai nasceu em 1940, o mesmo ano de Pelé…filho de uma família pobre, sei pouco sobre eles (meus avôs), apenas que, quando o meu vô Candido morreu, o meu pai, uma tia – chamada Tereza, que eu nunca conheci -, e a minha avó Alcinda vieram para Porto Alegre e moraram no Areal da Baronesa (a famosa cidade baixa), que era o núcleo dos negros trabalhadores.
Minha avó era lavadeira e levava o menino Paulo junto em suas andanças e clientes. Um destes, uma família italiana rica no Menino Deus, era dona de um tabelionato. O Paulo ficava escondido debaixo da cama, pegava carona de bonde, tomava banho na praia de belas. O Paulo era um negrinho bonito de cabelo liso (afro-indígena) e muito inteligente. Seu Pedro, o cliente rico de minha avó, resolveu apadrinhar o negrinho… e aí ele estudou… trabalhava de mandalete (nome de entregador na época), faz tudo no Tabelionato.
O Negrinho inclusive passou no vestibular da UFRGS para Filosofia. Mas Paulo, por todo o racismo atravessado e estrutural, recebia a cada passo mais nãos que sim… impactando no seu emocional, transformando sua sensibilidade em dureza. O lugar onde Paulo conseguia transitar livremente era o da beleza… as mulheres brancas e pretas se encantavam e ele aprendeu que este lugar da beleza e da sexualidade era um passaporte social.
Paulo foi o homem mais bonito de 1961, da Sociedade Floresta Aurora. E depois disto se casou com uma mulher preta de família em ascensão pra classe média. Paulo passou no concurso dos correios, pois a faculdade não era pra ele, não tinha como se sustentar… e também, né? Um homem preto não precisava tanto. Com os sonhos sendo negados no cotidiano, Paulo ia em festas, era endeusado e descartado…com isto vieram as bebedeiras, a bebida frequente e o alcoolismo. Uma personalidade violenta, dura… todos diziam: Paulo podia virar noite, mas nunca perdeu um dia de trabalho. Meu pai não cultivava laços familiares. Não sabia como lidar com a noção de família.
Vou cortar aqui a história de Paulo, homem negro da década de 40, para passar a Pelé e sua trajetória brilhante de atleta que conseguiu driblar esta realidade para um homem negro e quebrou o racismo ao meio habilitando atletas negros para a esporte paixão nacional – o futebol.
Meu Pai Paulo teve 3 casamentos e 5 filhos…onde eu sou a do meio. E sua 1ª filha. Paulo me amava, mas ele já não se amava. Era um “bêbedo, mulherengo”, como minha avó dizia. Meu pai mergulhou nas sombras e eu fui entender isto muitos anos mais tarde, perto de sua morte. Era efeito de um racismo violento em cima dos homens negros.
Eu fui registrada pelo meu pai. Sandra não foi e virou o ponto de detratação da branquitude no Brasil no momento da morte do maior esportista mundial. Eu fui registrada, mas não tive um pai presente, não tive meu pai comigo. Mas como poderia se ele não conseguia se ter com ele diante de todas as suas frustrações e negações de sua potência? Meu pai se abandonou no caminho da vida. Ele faleceu com 79 anos, ouvindo notícias todos os dias, com uma inteligência fora do comum, sem poder se expressar. Meu pai teria sido um filósofo brilhante ou um advogado revolucionário. Não faltou força de vontade, sobrou foi violência de reduzir um homem negro ao seu lugar: a subalternidade.
Este texto é para dizer: não julguem Pelé e muitos homens negros no mesmo nível de um pai branco que abandona um filho ou filha branca. Existe um abismo nestas relações para serem julgadas de forma rasa e iguais. Existe um oceano inteiro de escravização, um mar de separações emocionais, um universo de não significação de laços familiares. “Ah, mas Pelé era diferente. Deveria dar exemplo.” “Era rico.” “ Sandra era filha da empregada.” “Ah, mas você está passando pano.” Ah, mais… O julgamento mediático que a morte de Pelé trouxe à tona só mostra que mesmo sendo o melhor do mundo, levando o Brasil a patamares de imagem que nunca aconteceram, um homem negro não merece paz e reconhecimento diante de sua passagem.
Pelé e meu Pai Paulo não aprenderem a amar. Aprenderem a sobreviver, a não confiar, a não expressar afeto pois isto significaria se machucar ainda mais. O Brasil tem um projeto claro de reduzir os homens pretos a pó até em suas memórias.
Escrito por uma filha de pai preto ausente, mas que depois entendeu o porquê percebeu que não dá pra ignorar o impacto da dissolução de laços e desumanização que é efeito da escravização até hoje.
Feliz ano novo com ministros negros e negras que me dão esperança de reparação histórica.