Notas preliminares
●Cresce a procura pelo explante de próteses de silicone.
●A comunidade médica é divergente sobre os possíveis problemas causados pelas próteses.
●Há muita informação disponível, mas também exageros e desinformação.
●Os sintomas relacionados às próteses são reais.
●Nem tudo diz respeito à saúde. O “fiz porque quis” também deve ser normalizado.
●Nós merecemos o direito de deliberar sobre nossos peitos. Santa Ágata não teve esta possibilidade.
Vamos a isto!
Desejados, profanados, idolatrados, criticados, objetificados. Desde que há registros, os peitos femininos já foram do céu ao inferno.
Peitos, seios, mamas, tetas. Apesar de etimologicamente distintos, na prática designam a parte do nosso corpo cuja função é a produção de leite, mas que ao longo da história da humanidade assumiu um forte papel erótico.
Quando os peitos começam a crescer é o corpo dando sinais de que está entrando na fase adulta e estes passariam a estar preparados para o aleitamento, sua função fisiológica. Porém, sabemos que não é só isto. A erotização dos seios vem de muito longe. Desde cedo, nos damos conta de que o “esconder e mostrar” essa parte do nosso corpo é também um jogo de sedução.
“Toda mulher, no fundo, deseja ser uma boa mãe e uma boa amante”. A frase é atribuída a um cirurgião plástico que atuou durante anos no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo. Talvez ele tenha razão, talvez não. Deliberava em causa própria. Com um bisturi na mão e um par de próteses era capaz de nos dar o duplo papel: mães e amantes à medida. Mas será que este desejo sempre foi genuinamente nosso?
Peitos todos temos. Os dos homens a eles pertencem, já os nossos são de domínio público. Os peitos das mulheres têm sido uma característica anatomofisiológica fundamental ao longo da evolução humana. Eles desempenham um papel importante na reprodução e na lactação. No entanto, a percepção da beleza e da importância atribuída aos peitos das mulheres varia ao longo do tempo e em diferentes culturas. Qualquer um “mete a colher”. Difícil separar o desejo próprio do desejo de agradar ao outro, de se encaixar em um modelo proposto. Porém há algo de novo no ar. Os peitões perfeitos, redondos, empinados e protuberantes começam a ser questionados.
É modismo, ou estão as mulheres reivindicando a posse dos próprios peitos?
Os peitos na história
Sagrados na antiguidade, tornaram-se marca do pecado nos tempos medievais. Símbolo de nobreza, de fertilidade, de vergonha, de status, de beleza, há exemplos significativos da presença dos peitos na cultura e nas artes.
Registros antropológicos da pré-história mostram a predominância de figuras femininas com seios volumosos, provedoras da vida.
A imagem da Deusa Nut, no antigo Egito, tem leite escorrendo dos seios. Simbolizava fertilidade, beleza e realeza.
A mitologia grega traz poesia. A Via Láctea teria surgido do leite dos seios de Hera, esposa de Zeus, enquanto alimentava Hércules.
Tem também os peitos perfeitos da estátua da Vênus de Milo. Modelo de feminilidade que atravessou séculos e séculos.
São inúmeras ainda as pinturas sacras e renascentistas de mulheres com seios à mostra. Às vezes somente expostos e outras amamentando, mas quase sempre com um toque de erotismo. Toda esta simbologia do passado moldou de certa forma parte do nosso imaginário.
Já na história mais recente, os peitos rechonchudos foram substituídos pelo tamanho “PP” das melindrosas da década de 20. Vieram os anos 40 e com eles as divas do cinema como Marilyn Monroe e Rita Hayworth. Bastou para que os seios fartos voltassem a ser desejado. Os anos 60 trouxeram de volta a estética pouco peito e mulheres magérrimas, especialmente na moda.
O “nem lá, nem cá” começou a ganhar espaço nos anos 70, e coincidem com a popularização dos peitos desenhados, feitos na sala de cirurgia.
As próteses de silicone
Até se chegar ao modelo que conhecemos hoje das próteses de silicone houve absurdos como o uso de bolas de vidro e implantes de esponja. Nem é preciso dizer o tamanho dos problemas que causaram.
O primeiro implante considerado como bem sucedido foi em 1961, nos Estados Unidos. Desde então, com o aprimoramento das técnicas e do material das próteses, o implante de silicone se tornou um dos procedimentos mais procurados em todo mundo. É inegável sua contribuição em casos de reconstrução mamária e resgate da autoestima de mulheres com câncer de mama, por exemplo, mas, como dito no início, minha abordagem aqui é prioritariamente pela pressão estética. É justamente neste contexto que outro procedimento cirúrgico ganha protagonismo. Em busca de um peito natural e por um resgate da saúde, muitas mulheres decidem deixar as próteses de lado e estão optando pela remoção. E não é só.
Nas últimas décadas, houve movimentos significativos de acessibilidade do corpo, que promovem a ideia de que a beleza vem em todas as formas e tamanhos. Isso levou a uma maior valorização da diversidade de corpos e ao incentivo à autoaceitação.
O explante
É um movimento relativamente recente. Dados da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS) apontam que, entre os anos de 2016 e 2020, o número explantes aumentou em 33% e esse percentual continua subindo.
Por trás desse aumento, estão termos como ASIA e Doença do Silicone, situações que englobam uma série sintomas e complicações que podem ser causadas não apenas pela prótese, mas por outros produtos terapêuticos ou usados em procedimentos estéticos que estariam relacionados ao desenvolvimento de processos inflamatórios no organismo.
Na mesma proporção que crescem os explantes, cresce também o número perfis nas redes sociais dedicados ao tema. Tem o lado positivo de ser um local de troca de experiências e apoio às mulheres que decidem explantar, em contrapartida não é difícil perceber que também é terreno fértil para disputas ideológicas e ofensas.
E voltamos à premissa: nossos peitos não são nossos peitos, nasceram em nós, mas são de domínio público.
Entram aí vaidades, falta de empatia, interesses econômicos, disputas de espaço, falta de sensibilidade em entender o outro como ser individual e com vontade própria. Não é necessário que haja militância e nem repulsa. Basta que haja informação de verdade e aceitação.
Eu explantada
O texto de hoje foi motivado por uma experiência própria.
Há duas semanas tirei as próteses. Com as devidas trocas, já eram 28 anos com peitos moldados. Não tenho a menor intenção de demonizar o silicone, fui muito feliz com minha imagem durante muito tempo. Coloquei após a amamentação do meu primeiro filho, e ainda amamentei mais dois. Usei e abusei de roupas que me favoreciam.
As coisas começaram a mudar há cerca de três anos. Uma série de pequenos sintomas foram se manifestando no meu corpo. Fiz uma maratona em médicos de diferentes especialidades. Desenvolvi uma doença autoimune, tomei remédios fortíssimos e nunca melhorava de fato. Por iniciativa própria comecei a pesquisar e vi que talvez pudesse ter relação com meus implantes. Não era um quadro grave, mas eu decidi tirar. Decidi porque sim, porque quis seguir minha intuição. Sei que é muito pouco tempo pra dizer que tudo mudou, mas já acordo sem dores e respiro sem dificuldade. Me olho no espelho e estou feliz com um peitinho pra chamar de meu. Me sinto livre, em vários sentidos.
Os peitos de Santa Ágata
Se você chegou até aqui, te deixo agora com a história de Santa Ágata. Fiquei impactada quando li, não somente por imaginar o sofrimento que ela passou, mas por me fazer refletir sobre como deixamos, ou somos induzidas a deixar que outros deliberem sobre nossos corpos.
Ágata era uma menina comum. Virou Santa. Seus seios foram arrancados com ferro. Ela viveu no século III na Sicília. Foi perseguida, esfolada, queimada e martirizada.
Era de família nobre e foi consagrada aos 15 anos por desejo próprio. A partir daí não teve mais paz. Caiu nas graças de um senador romano.
Ela o rejeitou, ele não se conformou. Ela manteve-se firme, ele decidiu vingar-se. Ela foi julgada, condenada, arrastada sobre cacos de vasos e brasas e como o maior dos castigos teve os peitos arrancados.
“Não te envergonhas de mutilar na mulher o que tua mãe te ofereceu para amamentar?” Estas teriam as últimas palavras da jovem.
Os peitos eram dela, mas se apoderaram deles.
Até quando?