No início do ano passado, importante empresa da mídia local noticiou: “Autuada pelo IPHAN, Prefeitura de Porto Alegre pode ter de retirar asfalto da Avenida Padre Tomé”. Dizia a matéria que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), através da sua representação regional, com sede em Porto Alegre, cumprindo sua obrigação, autuou a municipalidade que acabara de asfaltar parte da via que desemboca na frente da Igreja de Nossa Senhora das Dores (1807-1906), no Centro Histórico da cidade, classificada como monumento histórico e artístico nacional (Processo de Tombamento nº 0096-T-38, Inscrição nº 185, no Livro das Belas Artes, fls. 32, em 20/07/1938). O fato foi consumado na segunda semana de janeiro de 2022.
Foi dado prazo até o dia 25 de fevereiro, uma sexta-feira, para a administração municipal apresentar a sua defesa. Consta que a obra foi suspensa no dia 13 de janeiro. Diz o jornalista Roger Silva que o Paço Municipal (entenda-se a administração municipal) solicitou regularização no último dia 10 e teve o pedido negado, com base no Laudo Técnico 012/2022, de 4 de fevereiro (SILVA, 2022). Nele consta que a reprovação ocorreu pela obra ter “provocado inequívoca interferência negativa à Igreja das Dores, bem como a todo o conjunto de edificações institucionais de caráter monumental que a ladeiam e criam, tendo a Igreja como protagonista, a ambiência do bem tombado”. Importante salientar que mesmo que a intervenção realizada fosse apenas para manter o piso de paralelepípedo, deveria a municipalidade solicitar autorização ao IPHAN, já que a legislação federal confere ao IPHAN o poder discricionário para autorizar intervenções de qualquer natureza no entorno de um bem tombado.
Não foi a primeira tentativa de consumar um ato ilegal desta natureza. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul, fato similar se deu em Pelotas, no entorno da Praça Coronel Pedro Osório, em 1987, ano do cinquentenário do IPHAN, quando às vésperas do carnaval, a administração municipal agiu da mesma forma, o que obrigou o professor e arquiteto Júlio Nicolau de Barros Curtis (1929-2015), que ocupava com intransigência o cargo de primeiro Diretor Regional da então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (9ª Diretoria Regional, que incluía os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina), a reagir frente ao ocorrido.
Depoimento de uma conceituada professora da Universidade Federal de Pelotas, dá conta de que a proposta de asfaltar a pista do carnaval partiu de um vereador e foi encampada pelo prefeito. Assim, a rua Marechal Floriano recebeu a camada asfáltica, em frente ao Teatro Sete de Abril, também classificado como monumento nacional (Processo de Tombamento nº 0640-T-72, Inscrição nº 438-A, no Livro das Belas Artes, fls. 91, em 11/07/1972).
Curtis tomou conhecimento do fato em cima da hora, através do representante da SPHAN na região sul do Estado, numa sexta-feira, não conseguindo tempo hábil para apelar ao Judiciário, no sentido de evitar o ilícito. Funcionário público responsável pela defesa do que de melhor se produziu em termos de cultura material no sul do Brasil, comunicou o Secretário da SPHAN, em Brasília, sobre o que estava prestes a ocorrer, solicitando-lhe que, “de forma contundente”, tentasse dissuadir o prefeito de desrespeitar a Portaria Ministerial protetora da Praça, além de, simultaneamente ferir o Artigo 18, do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, em pleno vigor (CURTIS, 2003, p. 249).
Para esclarecer o leitor, diz o Artigo 18, in verbis: “Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança de coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinquenta por cento do valor do mesmo objeto”.
Paralelamente, Curtis telegrafou ao prefeito, alertando-o que a existência de bens tombados naquela Praça, tornava-o ilegalmente impossibilitado de consumar o ato. Ao mesmo tempo redigiu e publicou um artigo intitulado “Permissividades de Carnaval”, publicado no Diário do Sul, de 11 de fevereiro de 1987, e no Diário da Manhã, de Pelotas, no dia seguinte. No artigo escreveu: “Se, de um lado, é direito lídimo de todo ser humano e, por extensão, de toda a comunidade a busca do conforto, de outro, é nossa obrigação repassarmos às futuras gerações, de forma tão íntegra quanto possível, os bens culturais que nos legaram e dos quais somos apenas eventuais depositários” (CURTIS, op. cit., 249).
No artigo publicado, Curtis lembrava que já aquela época, existia jurisprudência firmada em acórdãos de tribunais consensualizando que “a redução de visibilidade”, referida no citado Artigo do Decreto-Lei, não passava a ser vista apenas como interceptação visual, mas, também, como consequência da competição de formas, cores ou texturas.
É pertinente citar o entendimento da experiente advogada Sonia Rabello, que foi professora titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde ensinou as disciplinas de Direito Administrativo e Direito Urbanístico nos cursos de Graduação e Pós-Graduação daquela instituição, tendo sido ainda Procuradora-Geral do Município do Rio de Janeiro e Procuradora-Chefe do Jurídico do IPHAN, dentre outros tantos cargos e ações que participou. Diz Sonia: “É interessante ressaltar que a visibilidade do bem tombado exigida pela lei tomou, hodiernamente interpretação menos literal (…). Entende-se, hoje, que a finalidade do art. 18 do Decreto-Lei 25/37 é a proteção da ambiência do bem tombado, que valorizará sua visão e sua compreensão no espaço urbano. Neste sentido, não só prédios reduzem a visibilidade da coisa, mas qualquer obra ou objeto que seja incompatível com uma vivência integrada com o bem tombado. O conceito de visibilidade, portanto, ampliou-se para o de ambiência, isto é, harmonia e integração do bem tombado à sua vizinhança, sem que exclua com isso a visibilidade literalmente dita” (RABELLO, 2009, p. 122-123).
No seu artigo, Curtis foi cirúrgico: “Da mesma forma, o pavimento, componente maiúsculo do diedro que se estabelece entre a edificação e seu plano de base, guarda a maior coerência e integração com o monumento que emoldura. Por isso que o paralelepípedo, antigo e artesanal, há muitos anos pedestaliza um dos conjuntos neoclássicos mais ricos e significativos da arquitetura doméstica brasileira, na cidade de Pelotas”, e concluiu: “Mas, infelizmente, a Praça Coronel Pedro Osório está em vias de perder agora mais um documento da sua potencialidade de transmitir cultura. E hoje, quase enlaçada por imensa tarja preta de asfalto, ostenta o luto da cidade, que ainda é uma das mais cultas do nosso Estado” (CURTIS, op. cit.p. 250).
De lá para cá, passados 35 anos, houve aperfeiçoamentos legais. É o caso da Portaria 187/2010, do IPHAN, que ritualiza os procedimentos para quem descumpre a lei.
Voltando ao caso de Porto Alegre. A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb), no início do ano de 2022, confirmou o recebimento do auto de infração que prevê multa e retirada da pavimentação asfáltica no trecho que define a área de proteção da igreja, informando ao jornalista Roger Silva que “A prefeitura mantém diálogo com a instituição e vai apresentar defesa dentro de tempo hábil”. Na matéria o profissional de imprensa lembrou que haveria a possibilidade de assinatura de termo de ajuste de conduta, que livraria a prefeitura da multa, mas culminaria na retirada da camada asfáltica (SILVA, op. cit., 2022).
O prefeito de Porto Alegre questionou a autuação emitida pelo IPHAN, confirmou que a obra foi suspensa e disse que as determinações feitas pela autarquia federal seriam atendidas. Na sua manifestação, ele afirmou que “gostaria que o IPHAN se preocupasse também com as vilas populares. Lá nós estamos asfaltando bastante e o povo tem aplaudido muito. Nas ruas asfaltadas aqui no centro, todas obedeceram a critério técnico” (Idem). O chefe do executivo municipal reforçou, segundo a matéria, que o órgão federal não pode paralisar a cidade: “Nós, com o IPHAN, sempre queremos proteger a cidade do ponto de vista cultural. Agora a cidade não pode ser travada. Eu vejo milhares de prédios abandonados e o IPHAN deveria lutar para ter dinheiro federal para poder recuperar esses prédios e nada faz. Agora, só notifica e não aponta caminho. Acho importante a notificação, mas acho importante apontar caminhos. Suspendemos o asfaltamento na região da igreja. Todo o asfaltamento nós faremos uma consulta prévia, mas o IPHAN não vai parar a cidade” (SILVA, 2022).
Importante salientar que na semana passada completou um ano do ocorrido e a situação continua a mesma.
É necessário rebater os argumentos do prefeito. Primeiramente, a cidade é um organismo vivo, em constante transformação. Ninguém jamais paralisou uma cidade. Nem em regimes antidemocráticos (de esquerda ou de direita), nem em cidades com a densidade de bens culturais altíssimos como Roma. Aliás, de Roma só vem bons exemplos, de administradores notáveis como Giulio Carlo Argan (1909-1992), ex-prefeito da “Cidade Eterna” (1976-1981), um dos maiores historiadores e críticos de arte da humanidade. Não se trata de imobilizar a ação de ninguém, mas sim, de refletir antes de agir. Qualificar um local, não necessariamente significa modificá-lo. Lugares como Roma, Paris, Lisboa, Porto, Barcelona, Cartagena de índias, Cidade do México ou até mesmo Havana, não são como Doha, Dubai, ou ainda Camboriú. Se diferenciam por sua identidade, não pela mesmice, e é claro, renovam-se valorizando ao máximo os objetos arquitetônicos que lhes identificam.
Não é papel do IPHAN se preocupar com as vilas populares. Isto é um argumento populista, despropositado e descontextualizado. Para tratar das vilas, existem outros organismos federais específicos. Agora no início do ano foi recriado o Ministério das Cidades, por exemplo. Como prefeito, já deveria saber que cabe ao IPHAN a preservação do patrimônio cultural brasileiro, portanto, quando age, o faz pelo interesse nacional. A argumentação de que as ruas asfaltadas no centro “obedeceram a critério técnico”, vai de encontro à reação do IPHAN. Demonstra que a prefeitura não observou a existência do monumento, o que evidencia ter sido uma avaliação técnica equivocada. Como em todas as situações em que se vê confrontado, o senhor prefeito usa a mesma frase: “acho importante apontar caminhos”. Quando apontados, como faz o IPHAN e todas as vozes que se levantam pela solução mais plausível, esses caminhos são desconsiderados, e seus autores já receberam até uma alcunha, de “caranguejos”.
Importante que se enfatize que não é atribuição do IPHAN fiscalizar asfaltamentos nas cidades brasileiras. Seu papel é de ter atenta vigilância com o entorno apenas dos bens por ele tombados, como é o caso do Setor C1, área delimitada para garantir a desobstrução visual da Igreja de Nossa Senhora das Dores.
Agora, no dia 5 de janeiro de 2023, saiu outra matéria no mesmo veículo de comunicação sob o título “Prefeitura não pretende retirar asfalto dos paralelepípedos no entorno da Igreja das Dores”, assinado por André Malinoski. Nela é noticiado que a administração ainda não acatou a decisão do IPHAN e que nem pretende fazer isso, indo de encontro ao que divulgou um ano atrás. O Secretário Municipal de Serviços Urbanos, em clara posição de desacato disse: “Não burlamos legislação, não entramos no bem tombado, foi no entorno. Retirar o asfalto não vai voltar ao status original porque já havia problemas de estrutura” (MALINOSKI, 2023). Senhor Secretário, vale a pena conferir a legislação, ela refere-se ao entorno. Basta ler. Se havia problemas na pavimentação, em harmonia com o IPHAN, deveriam encontrar a solução adequada. Aprenda com o exemplo de Pelotas que retirou o asfalto e seu prefeito reverteu a indesejada reputação de adversário dos monumentos da sua cidade.
Já o argumento que agora apresentam, buscando apoio das unidades militares estabelecidas na região, de que o asfaltamento trará mais segurança aos pedestres e veículos, é uma falácia. Pelo contrário, o asfalto estimula a circulação mais rápida, inclusive prejudicando a possibilidade de apreciação do monumento na esquina da Padre Tomé com as ruas Sete de Setembro e Siqueira Campos. O bom senso nesses casos recomenda a redução de velocidade e cuidado com pedestres e visitantes, muitas vezes distraídos (o que os técnicos chamam de “traffic calming”), como argumenta um colega cuja trajetória é uma das mais respeitadas no meio da preservação dos bens culturais e do urbanismo. Para corroborar, basta perceber que outro monumento da cidade, o Viaduto Otávio Rocha, possui paralelepípedos no leito da rua Duque de Caxias. O motivo é propiciar ao motorista e ao mesmo tempo ao pedestre, segurança para apreciá-lo.
O Superintendente Regional do IPHAN pacientemente continua aguardando a resposta da prefeitura sobre a minuta de termo de ajustamento de conduta apresentado pelo órgão federal, que é “um acordo que o Ministério Público (no caso federal) celebra com o violador de determinado direito coletivo. Este instrumento tem a finalidade de impedir a continuidade da situação de ilegalidade, reparar o dano ao direito coletivo e evitar a ação judicial” (MALINOSKI, op. cit., 2023). Após a apreciação da Procuradoria Geral do Município, não há mais o que protelar. É tomar a decisão que lhe cabe e ponto final. Cumpra-se a lei.
Porto Alegre notabilizou prefeitos como Otávio Rocha, Alberto Bins e José Loureiro da Silva, que souberam conservar e transmitir o legado que receberam dos antepassados, ao mesmo tempo que qualificaram a paisagem urbana da cidade. Serão sempre lembrados como seus melhores administradores. Senhor prefeito, espelhe-se neles e nesta lição que Pelotas ofereceu. A história, faz a sua parte, julga.
BIBLIOGRAFIA
CURTIS, Júlio Nicolau Barros de. Vivências com a Arquitetura Tradicional do Brasil: registros de uma experiência técnica e didática. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2003, p. 249-251.
RABELLO, Sonia. O Estado na preservação de bens culturais: o Tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN, 2009.
MALINOSKI, André. Prefeitura não pretende retirar asfalto dos paralelepípedos no entorno da Igreja das Dores. Porto Alegre: Zero Hora / Notícia, 05/01/2023 – 18h25min (atualizada em 10/01/2023 – 20h03min).
SILVA, Roger. Autuada pelo IPHAN, Prefeitura de Porto Alegre pode ter de retirar asfalto da Avenida Padre Tomé. Executivo municipal tem até sexta-feira (25) para apresentar defesa; multa e recuperação do piso original são alternativas previstas por lei. Porto Alegre: Zero Hora / Patrimônio Histórico, 18/02/2022 – 11h54min (atualizada em 21/02/2022 – 11h32min).