Ontem foi dia de sair cheia de sacolas para fazer doações. Sem carro, mais difícil, braços cansados, mesmo assim, fui. É preciso dividir o que for possível.
Hoje parece feriado, mas não é. Antes fosse. A cidade está quase deserta, as paradas de ônibus, quase vazias. Poucas pessoas caminham nas ruas, todas com uma expressão séria no rosto. Muitos não conseguiram chegar no trabalho. Primeiro dia de sol depois de muita chuva. A cidade está alagada.
Hoje saí para a rua a fim de tomar um pouco de sol, um tanto de ar, caminhar e ir em busca de água potável.
Água potável, o bem mais precioso no dia de hoje. E talvez nos próximos também.
Sobra água, falta água. Um paradoxo penoso de administrar. Administrar bem, coisa que a cidade precisava ter tido. Agora está nesse estado. Chora o leite derramado. Choramos todos.
Da torneira, não sai mais nem um pingo. Banho só de lencinhos umedecidos, um luxo pra quem os tem. O vizinho me doou um litro de água mineral. Com gás. Acho que leu o desespero no meu rosto. E agora, como é que se faz? Pra cozinhar, pra beber, pra tomar os suplementos alimentares, pra tudo? Cozinhar em casa hoje, nem pensar, não tem água, lembra? Depois, como lavar a louça? Nem deu tempo de encher baldes, bacias, panelas, nada. O jeito foi improvisar.
O perito do tempo publicou hoje que vem mais chuva por aí. A gente olha pela janela e vê a chuva caindo e já dá um medo, a gente vê o lixo se acumulando, a gente vê a cidade largada, as pessoas limpando, varrendo o lixo, a gente vê os cidadãos largados à própria tristeza, à própria sina. A cidade alagada. A cidade sitiada. Uma calamidade.
Choveu de novo. Sujou tudo outra vez. Trabalho perdido. Lixo Acumulado. E assim, nos sentimos abandonados, o barco à deriva, sem dono, no meio da catástrofe. Já não temos lágrimas pra chorar, as forças estão diminuindo, os voluntários estão ficando cansados de remar contra a maré. Que maré, afinal? Quem é que vai refazer – fazer tudo de novo? E dói, dói muito, só é fácil pra quem veste o colete bonitinho pra pousar pra selfie e depois some. E depois? O que vem depois?
Eu que adorava o barulhinho de chuva no telhado, já não posso nem ouvir o som de água. Preciso escrever sobre isso. Será que consigo escrever, com tanto trauma na cabeça e tantas necessidades no corpo? Também é preciso falar sobre a dor. Será possível? Às vezes também é preciso rimar amor e dor. Esperançar.
Os pensamentos navegam em águas turvas.
Inês Lempek é psicanalista, poeta e escritora. Natural de Porto Alegre RS, morou em São Paulo e Brasília. Graduada em Psicologia pela UFRGS, especialista em Psicanálise e Cultura, pela UnB. Autora dos livros O avesso do clima, e Entre-laces da palavra, (Bestiário). Antologias: Poesia e prosa (IEL), 102 que contam, 104 que contam (Nova Prova), De tudo um conto (Bestiário), Antologia Ruínas (Patuá), entre outras.
Foto da Capa: Copilot/Gerada por IA
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