No ano de 2016, em um período próximo às eleições municipais de Porto Alegre, com o desejo de colocar em pauta algumas ideias eu, ingenuamente, escrevi vários artigos em um blog que mantinha no Sul21. A proposta era sugerir aos candidatos um olhar mais atento e sensível para o ambiente urbano. Parti do ponto de vista da inclusão e da acessibilidade, no sentido de refletir sobre as inquietações que mobilizavam pessoas que, como eu, tinham dificuldades e queriam ser ouvidas. É claro que ninguém leu. Muito menos ouviu. Mas continuei atenta à cidade e seus movimentos.
O meio ambiente urbano e a qualidade de vida eram temas que ocupavam o cotidiano de pessoas com deficiência em busca de respeito e acolhimento diante dos impedimentos que muitas vezes enfrentávamos. Afinal, a quem pertence o espaço público? Quem são seus inventores e atores? É possível humanizar as metrópoles e transformá-las em espaços criativos, de compartilhamento, colaboração, acolhimento, celebração da arte de bem viver?
Vivemos em cidades cheias de conflitos criados por nós, moradores, pelo poder público e pelo poder econômico, relacionados ao tratamento que damos aos espaços, muitas vezes desordenado e sem critérios. É bom ter consciência de que a responsabilidade é de cada um – do cidadão que descarta o lixo de qualquer jeito, do empresário que constrói “mastodontes” por pura ganância, sem observar o entorno e a natureza, e de governos que vendem a alma ao dinheiro fácil, não fiscalizam e não fazem o que realmente precisa ser feito – cuidar de um patrimônio que é de todos.
É evidente que os espaços precisam ser valorizados, requalificados e que é fundamental multiplicar essa discussão, difundindo a ideia de que para viver na cidade não precisamos de “mastodontes de janelas pequenas”, grudados uns nos outros, que viram as costas para a paisagem, desrespeitam as regras mínimas do meio ambiente e da convivência saudável.
É evidente que as cidades devem crescer sem afogar seus centros históricos, sem se tornar impermeáveis, cinzas e insensíveis, sem abrir mão da inclusão e da acessibilidade, da brisa, das praças públicas e da paisagem arborizada, dos horizontes amplos, das cores, da convivência. Mas o que vemos hoje – ano de 2023, que já registrou inúmeras tragédias climáticas – em relação aos armazéns A e B do Cais do Porto, considerados patrimônio nacional, é desolador. O novo edital de licitação que corre por aí permite a construção de edifícios na beira do Guaíba e a exploração privada do cais por 30 anos. Se isso não bastasse, a prefeitura asfaltou (!!!), sem consultar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan, o entorno da Igreja das Dores, tombada pelo patrimônio da União. A Justiça Federal foi acionada e determinou a paralisação da obra. Mas tudo ainda está em discussão!
Ignorância do poder público ou abuso de autoridade?
Que necessidade é essa dos governos de ignorar o nosso patrimônio, a nossa história e ainda tirar a luz, o pôr do sol e a vista linda do lago Guaíba no centro da cidade? São identidades que nos representam e dizem muito da nossa trajetória.
É evidente que precisamos de um planejamento transparente, tanto das autoridades quanto do poder econômico, que respeite o nosso patrimônio e a democratização dos espaços – mais agilidade e menos burocracia, mais criação e menos ambição e privatização. Será que ainda teremos que pagar para apreciar o pôr do sol quando o que se faz urgente é reduzir a dura paisagem concreta que está nos cercando? O que queremos é respirar e espalhar o olhar pela cidade que escolhemos para viver e que, curiosamente, chama-se Porto Alegre. Porto? Alegre?
O bom espaço público
É impossível não lembrar aqui do designer visual, editor e escritor Vitor André Rolim de Mesquita*, da Pubblicato Editora, idealizador do Projeto URBE e curador editorial de uma revista instigante chamada “URBE – Cultura Visual Urbana e Contemporaneidade”. Conheci o Vitor em 2011 e a revista passou a inspirar minhas reflexões sobre a cidade. O Projeto, que pensava o espaço urbano no sentido de torná-lo criativo e agradável ao convívio, conquistou o Prêmio Açorianos de Artes Visuais (Especial do Júri / 2013) e por duas vezes o Prêmio Abrigraf de Excelência Gráfica (2012 e 2013). Vitor destacava, na época, que os cidadãos estão preocupados com a sua cidade, com a revitalização de áreas deterioradas, com a ocupação de espaços. “A palavra é pertencimento e o verbo é compartilhar.”
“Cidade criativa é cidade compartilhada de dentro para fora. Fazer parte dessa transformação e experimentação é o que está no atual cotidiano das pessoas”.
Nessa direção, o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, um estudioso das cidades e da vida das pessoas nos grandes centros, referência mundial em desenho urbano e espaços públicos, levantou 12 critérios para o Bom Espaço Público. Dizem respeito a todos nós e, claro, aos governos e aos empresários que, na maioria das vezes, ignoram o público – o urbano e o humano – e exercem o poder em nome do lucro e do benefício de poucos. E se os gestores urbanos procurassem ler o que diz Gehl e adaptassem algumas de suas ideias aos espaços sob sua responsabilidade?
1 – Proteção contra o tráfego.
2 – Segurança nos espaços públicos.
3 – Proteção contra experiências sensoriais desagradáveis.
4 – Espaços para caminhar.
5 – Espaços de permanência.
6 – Lugares para sentar.
7 – Possibilidade de observar.
8 – Oportunidade de conversar.
9 – Locais para se exercitar.
10 – Escala humana.
11 – Possibilidade de aproveitar o clima.
12 – Boa experiência sensorial.
Jan Gehl dá ainda cinco conselhos para cidades habitáveis, saudáveis, seguras e sustentáveis.
- Parar de construir cidades pensando em “facilitar a vida dos automóveis”.
- Fazer dos espaços públicos o foco dos projetos urbanos.
- Projetar experiências multisensoriais.
- Proibir o uso de automóveis.
Mas quem está realmente preocupado com estas questões? As tragédias que vivemos no Rio Grande do Sul neste momento fazem um alerta. E é urgente!
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*Vitor é o editor do meu livro “E fomos ser gauche na vida”, um amigo e um parceiro incrível na minha jornada pela escrita.
Foto da Capa: Luke Miller / Pexels