Na tarde de domingo, 21.07, Joe Biden renunciou à corrida pela presidência dos EUA. Em seguida a revista Time já publicava, nas redes sociais, a capa de sua próxima edição: Biden deixa a página, só restando uma perna, e entra Kamala Harris, sorridente, em direção ao centro da página. A capa de 28.06 – pós-debate de Joe Biden com Donald Trump – tinha exatamente o mesmo padrão gráfico e Biden já caminhava para fora da página. Apenas uma palavra: Panic. Na capa atual, nenhuma palavra, a ação foi concluída. A imagem diz tudo. Essa capa me provocou um déjà-vu delicioso, de quando fui repórter no Jornal da Tarde, em São Paulo.
Toda uma concepção de jornalismo no Brasil mudou a partir do final da década de 60 com a revolução que o JT causou. Começava pela proposta gráfica, arrojada, fotos estouradas em capas standard, criatividade em recursos visuais que surpreendia e encantava. E inaugurava também uma nova forma de dar notícia, saltando do factual para uma narrativa contextualizada, indo ao encontro das pessoas reais em seu cotidiano, sacudindo a poeira do relato formal, buscando a singularidade. Eu cheguei no JT em 1989, tinha 27 anos e estava em São Paulo há dois. A cidade era fascinante, mas também difícil – eu não tinha familiares lá e pouquíssimos amigos, a grana era curta e a vida cara. Mas a redação do JT era uma festa. Éramos vários jovens no jornal diário mais inventivo do país. Convivíamos com os veteranos Marcos Faerman, Ivan Ângelo, Percival de Souza, Ricardo Setti, Celso Kinjô, entre outros. Até o Fernão Mesquita era interessante. Só o Ruy Mesquita* ficava no aquário dele, inacessível. Murilo Felisberto, o autor da proeza, com Mino Carta, às vezes dava as caras na redação. Ele conseguiu também levar grandes nomes do jornalismo para o JT, como o crítico de arte Jacob Klintowitz, de quem falaremos na próxima coluna. O Jornal da Tarde foi um laboratório, onde era permitido, mais ainda, era estimulado, até uma regra, pensar fora da caixa.
Eu fiz reportagens que me marcaram. Tenho carinho especial por uma sobre a vida 24 horas no terminal rodoviário do Tietê e por outra sobre o novo amor, quando formar famílias alternativas ainda era novidade. E me marcou profundamente também o respeito e a sensibilidade na redação. Em especial do meu editor na Geral, Fernando Portela, o cara que se embrenhou na selva para resgatar a história da guerrilha do Araguaia, a primeira reportagem sobre este capítulo dos mais sangrentos da resistência à ditadura militar, publicada em série, que praticamente dobrou a tiragem do Jornal da Tarde durante uma semana, em 1979, e depois como livro – Portela é autor de vários livros jornalísticos e de ficção, todos excelentes. Houve uma pauta que me quebrou ao meio: um pai caminhara de Curitiba a São Paulo e estava na Praça da Sé, de pés descalços, sujo, exaurido, com um pedaço de papelão onde estava escrito que precisava de ajuda para encontrar sua filha desaparecida. Quando voltei para a redação, sentei na minha mesa e fiquei de cabeça baixa sem conseguir escrever. Portela veio conversar comigo e me ajudou a destravar – eu não teria conseguido escrever sem a compreensão dele.
Hoje o jornalismo está mais careta de novo, mas acho que por dificuldade de rumo. Tanta coisa mudou neste século, na verdade, praticamente tudo mudou e ainda estamos “desbussolados”, como diz o psicanalista lacaniano Jorge Forbes. Épocas de transição são sempre um desafio. Lembro bem do que aconteceu na transição da ditadura para a abertura no Brasil. Naquela época, a Coojornal, em Porto Alegre, era a cooperativa de jornalistas que editava esse jornal de esquerda, combativo. Com as mudanças, a “liberdade”, ninguém sabia direito como seguir em frente. Eu tinha 18 anos então e trabalhava como secretária da redação. Foi emblemático o caso de uma de nossas maiores estrelas, o Henfil. Tive extrema dificuldade de explicar para ele que a redação propunha uma temática, digamos, mais comportamental… isso soava grego para o Henfil.
Estamos agora em outra encruzilhada, especialmente por conta da inteligência artificial. Obviamente, vejo o problema da IA, mas vejo mais a oportunidade. Fico surpresa quando converso com amigos jornalistas que não acreditam mais na profissão. Quando conto que meu filho optou por jornalismo – vai se formar em 2025 –, lamentam. Eu continuo vibrando. Incentivei quando me falou da sua opção e também porque o guri só pode ter herdado do pai, Divino Fonseca, um gene de jornalista esportivo, e colorado, tal a sua identidade com o futebol desde muito pequeno. Em 2020, ele estava no Terceirão, e fez uma entrevista comigo para a escola, o João XXIII. Vou reproduzir adiante três das perguntas, pois as respostas continuam a ser o que penso do jornalismo. Quatro anos parece tão pouco, mas a IA ainda não tinha explodido com o ChatGPT, o deep learning, o processamento de linguagem natural, etc. Assim, só acrescentaria ainda que veremos no futuro, talvez próximo, alguma mídia totalmente digital explodindo em criatividade de recursos visuais e literários, uma fusão de jornalismo e cinema. Não como os documentários que conhecemos e sim como uma narrativa social, contextualizada, uma coisa na linha de “romance histórico” com uso da inteligência artificial. Revistas digitais que contarão histórias com muita informação, fotos, arte e imagens animadas geradas por IA, até com a interação do leitor, tipo nos games. Acho que isso ganharia o coração da juventude.
O Jornal da Tarde serve de exemplo. O jornalista Ferdinando Casagrande, autor do livro Jornal da Tarde – Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, explica bem: “A equipe que criou o JT em 1966 entendeu que os leitores jovens queriam ver, nas páginas do jornal, o mundo em que viviam. Eles queriam ler sobre a MPB, a Jovem Guarda; queriam dicas de restaurantes, filmes e peças de teatro; queriam saber sobre quem eram os fabricantes e como funcionavam os motores dos carros que os encantavam nas corridas de Fórmula-1. E nada disso estava nas páginas dos outros jornais, porque era considerado vulgar, ou publicitário. O JT entendeu essa necessidade e surfou sozinho nessa faixa por, pelo menos, quinze anos, quando o que eles criaram ali se transformaria em padrão em todos os jornais. Então, acredito que a experiência do Jornal da Tarde tem muito a ensinar, porque ele foi um título disruptivo. Ele desconstruiu um modelo consagrado e triunfou. Quer mais inspiração para quem está preocupado em conquistar novos leitores?”.
Vamos à entrevista para o meu filho.
Cássio Fonseca: O que você imagina que acontecerá com o jornalismo no futuro?
Vera Moreira: Será totalmente digital, com muita ênfase nas imagens. Será um jornalismo mais autoral, mas só terá credibilidade se sustentado em conhecimento e não em opiniões vazias, como predomina atualmente. Jornalismo é conhecimento e deve ser contextualizado. As notícias factuais terão menor ênfase, servirão mais como ponto de partida para reflexão e montagem de cenários, no que as imagens e vários materiais gráficos contribuirão fortemente. Tudo sempre com base em conhecimento, reforço essa necessidade, pois a internet hoje é um campo de especulação predominantemente pobre, e se buscará no meio digital conhecer cenários, sustentados pela credibilidade de quem os apresenta. Hoje, é preciso paciência e discernimento para encontrar informação importante. No futuro, os endereços mais interessantes e acessados serão os de maior credibilidade no cruzamento de informações para a exposição de cenários. Navegar será bem mais fácil e rápido.
CF: Você acredita que essa é uma profissão em alta ou em baixa?
VM: Em alta, muito em alta, pois esses campos de exploração são muito novos e a informação digital está vivendo ainda a primeira infância – as bibliotecas mundiais ainda nem estão todas digitalizadas e há acessos ainda bloqueados de muita informação relevante. Vejo um futuro de possibilidades infinitas com o uso dos recursos de pesquisa digital e materiais gráficos, com muito cruzamento de informações, assim como acesso à inteligência artificial.
CF: O mercado está saturado ou necessita profissionais?
VM: O mercado está se redesenhando e precisa muito de profissionais, novos profissionais, bem diferenciados. Isso representa um desafio, pois as faculdades ainda formam no antigo jornalismo, e esse só tem um papel básico já hoje. O potencial é enorme, mas os profissionais vão ter de correr bastante por conta própria, se dedicar profundamente a conhecer os seus campos de atuação e aprender a trabalhar no meio digital, explorando todos os recursos disponíveis. O mercado para essa profissão é de infinitas possibilidades, pois qualquer tema pode se relacionar com o jornalismo. Essa é a grande dádiva do ofício: o jornalista trabalha para conhecer.
*A família Mesquita é proprietária do Grupo Estado, que bancou a experiência do Jornal da Tarde de 1966 a 2012.
Foto da Capa: Reprodução da capa do Jornal da Tarde de 6/7/1982, a tristeza pela eliminação do Brasil da Copa do Mundo.
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