Li pela primeira vez a Pedagogia do Oprimido por volta de meus 22 anos. Foi, parafraseando Bandeira, ‘meu primeiro alumbramento’ pedagógico! Não sei se compreendi bem algumas de suas noções, mas a passagem sobre a “educação bancária” deixou-me uma impressão tal que comecei a enxergar “bancarismo” em praticamente todas as relações que envolviam autoridade ou hierarquia e supunha, na minha ingenuidade, que dialogicidade bem que poderia ser uma norma universal de conduta, um critério ontológico e transcendental! Não tinha a menor desconfiança, claro, àquela altura de minha vida, de que o futuro do paulofreireanismo seria esta ampla institucionalização de seu pensamento e memória, que culmina no Patronato (2012) e no Marco de Referência da Educação Popular (2014). Naqueles anos (o que alongava ainda mais minha beata ingenuidade), eu estava certo de que alguém que tivesse lido Freire ou Marx não teria outra saída a não ser tornar-se freireano ou marxista. Ou então permanecer em sua “desumanidade” e alienação.
Certo dia, fui convidado para um debate, aqui em Recife, muito reservado, em que o educador compareceria. Sentei-me junto dele, que colocou a mão em meu ombro. Minha reação foi a de não me mexer durante quase toda a manhã, temendo que ele interpretasse qualquer gesto meu como uma reação antipática ao seu tocar. Passei o resto do dia com torcicolo por causa de Paulo Freire! É a lembrança mais dolorosa que tenho dele. Mas, ali, foi ficando claro que a figura carismática de Paulo ia muito além do encanto que ele exercia sobre seus seguidores ou admiradores: como se, ser tocado por ele, implicasse uma conversão. Ou um torcicolo!
Passados todos esses anos que me separam daquela primeira leitura, percebo que o que a Educação Popular propôs, há mais de 60 anos, era algo mais profundo e mais extenso: constituir um “povo”! Nesta constituição, romantismo e iluminismo se juntaram, não para definir projetos de conscientização, mas, a partir da nomeação da precariedade da consciência do outro, sugerir a conversão pedagógica desta mesma consciência, o que fazia da chamada Educação Popular um amplo programa, digamos, “ortopédico”.
Penso que chegou o momento de ir além das respostas pedagógicas que nos foram anunciadas pelos intelectuais dos anos 50/60, para que possamos pensar melhor a dimensão da crise educativa em que nos metemos, sob pena de a Educação Popular se tornar uma antiga promessa pedagógica datada e embriagada de sensibilidade libertária: um encantador anacronismo numa época unidimensional de esvaziamento utópico e gerencialismo tecnocrático para a qual aquela modalidade de educação não passaria de um contraponto frágil e inofensivo.
Convido ao debate.
Foto da Capa: Montagem
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