Eu me formei em jornalismo já há bem umas três décadas, então é muito possível que a formação hoje seja melhor e mais abrangente, mas uma coisa que era visível quando frequentei as aulas da Fabico/UFRGS, nos anos 1990, é que havia um número bem grande de professores perfeitamente aptos a falar de José Marques de Mello e de Paul Virilio e muito poucos pareciam conhecer na prática o ambiente árido das redações no mundo extra-acadêmico.
Antes de entrar no centro deste texto, o parágrafo de abertura me força a abrir uma outra consideração colateral. Os motivos para uma educação pública são o objeto de uma discussão já bem extensa sobre dois pontos de vista ideologicamente conflitantes: o sociológico-filosófico e o mercadológico-pragmático. O argumento sociofilosófico parte do pressuposto de que o conhecimento é um valor intrínseco – sendo, portanto, a educação universal moralmente positiva para a sociedade como um todo. Uma sociedade em que o acesso ao conhecimento, às ciências, às artes seja abrangente se torna, nessa visão, uma sociedade mais criativa e ética. No ambiente de formação acadêmica e profissional de uma universidade, esse ponto se desdobra no corolário de que a construção de uma mente crítica, por meio de um saber múltiplo, é a melhor maneira não apenas de formar bons cidadãos, mas também bons profissionais, cujo horizonte mental se alongue para além de considerações imediatistas e redutoras de seu próprio ofício.
O argumento mercadológico defende que a educação deve se restringir aos conhecimentos específicos e pragmáticos que possam aperfeiçoar a capacidade de trabalho e dotar o aluno de vantagens competitivas num mundo gerido por um mercado cada vez instável e em que um número cada vez maior de pessoas disputa postos de trabalho escassos em uma economia em constante transformação.
Assim, quando comento que, de uns 20 professores que tive durante meus quatro anos de curso, havia uns três apenas que tinham algo relevante a dizer sobre a vida prática do jornalismo (um abraço ao maior deles, Geraldo Canali), não estou aqui fazendo uma crítica subterrânea com má-intenção, simplesmente descrevo o cenário com o qual eu tive contato – deploro o quanto o argumento “mercadológico” na verdade representa uma tentativa do mercado de transferir para o Estado o custo de treinamento de sua massa de trabalho, e o quanto ceder a ele na prática significa dar ao mercado, aos donos e às grandes corporações a última palavra sobre a grade curricular do ensino, com resultados catastróficos. Também não acho que especificamente o curso de jornalismo deva ser mais prático do que é planejado para ser, ao menos no papel. Talvez naquela época precisasse ser mais bem lecionado, apenas, tanto na teoria quanto na prática (naquela época, preito. Hoje é bem possível que seja).
Mas, como eu disse, havia uma clivagem bem demarcada entre a realidade cotidiana do mercado jornalístico e as categorias arbitrárias e algo estéreis dos livros teóricos sobre gêneros jornalísticos ou jornalismo comparado. Muitos de nós, jovens, abríamos nosso caminho em meio aos veículos em atividade batendo cabeça com um novo léxico que definia um tipo de prática que não era suficientemente discutida quando estávamos em aula. E acho que isso pode ser não uma anedota inócua para mesa de bar, mas sintoma de algo ainda mais danoso ao jornalismo como prática: o quanto determinados dilemas surgidos apenas na prática não entram em debate simplesmente porque os acadêmicos sequer estavam cientes de sua existência.
Como em tudo numa corporação de ofício, parte dessa lacuna era suprida pela troca de experiências com veteranos generosos de uma geração anterior, que atualizavam os novatos sobre práticas, nomenclaturas, sobre o ofício na prática. Como as redações andam limpando suas equipes de qualquer coisa que pareça um veterano, deveria haver uma porrada desses espíritos sábios e generosos por aí fazendo a sua parte para apresentar a selva do jornalismo diário para os futuros jovens iludidos (ops, desculpe), sonhadores que estão ingressando agora na ficção, digo, na profissão. Como infelizmente não topei com o texto de ninguém que fosse ao mesmo tempo sábio ou generoso, acho que vocês vão ter que se contentar comigo, que provavelmente não seria acusado nem remotamente de ser qualquer das duas coisas. Mas eu passei mais tempo dos últimos 30 anos dentro de uma redação de jornal do que na academia, então se eu não sei como anda o estado da universidade, e eu realmente não sei, o das redações eu tenho uma ideia bem boa… Logo, meu jovem, amarre o cinto para um curso rápido sobre o jargão do jornalismo na vida real – eu podia dizer “aproveitem o meu conhecimento enquanto ainda estou vivo, mas tenho a forte impressão de que o jornal diário como instituição talvez morra antes de mim, então aproveite enquanto ELE está vivo)
CASE – Você vai odiar o case. Você entrou na faculdade de jornalismo provavelmente pensando em algo parecido com o case, mas seu uso pela imprensa vai ser tão malbaratado que você vai odiá-lo, vai por mim. O “case” (pronunciado à inglesa, of course) é basicamente o encontro, por meio de um trabalho de reportagem, de um personagem que resuma o problema da sua matéria. Assim você pode produzir uma foto e não ter apenas um texto longo, ganhar uma ilustração fácil, e ao mesmo tempo pode trabalhar conceitos abstratos como algo que afeta vidas comuns como as dos leitores. Não há nada de particularmente errado com o conceito, o problema é quando ele se torna uma muleta, a história de uma pessoa comum nesse caso não vale pelo que ela é, e sim pelo que ela representa dentro da pauta (não é incomum que casos como uma nova tabela de cobrança de impostos automotivos seja ilustrada com “cases” em que você sai pra rua com uma lista de supermercado do tipo: “falar com alguém que tem carro com mais de 20 anos de emplacamento”, “falar com motorista de veículo de transporte” e assim por diante. Há aí um componente ético que nunca é substancialmente discutido porque o trabalho do jornalismo diário é o equivalente ao daqueles caras que enchem um carrinho de mão com tijolos para levar de um lado a outro de um canteiro de obras. Você enche, carrega, descarrega, volta ao ponto de partida e começa tudo de novo. Não acredite no glamour da profissão, meu jovem. Pensar em você como um operário da informação vai fazer maravilhas até mesmo pela consciência de classe desse meio em que tantos se acham.
ESCUTA – este não é um termo de criação recente no jornalismo. Ao contrário, já era muito utilizado em serviços de assessoria de imprensa para definir o que também se chama de RÁDIOESCUTA: um serviço de monitoramento do que sai sobre um assunto, um tópico, uma pessoa ou marca nos espaços de mídia audiovisual. Eu mesmo trabalhei no serviço de radioescuta da prefeitura de Porto Alegre, na administração de Tarso Genro, nos anos 1990, e era basicamente uma sala cheia de estudantes gravando programas com quase toda a mídia local batendo no PT (os relatórios que a gente fazia sobre isso eram longos paca…). Mas não, o moderno sentido da palavra nas redações sinaliza outra coisa, que às vezes nem tem a ver com escuta, mas sim com LEITURA: você vai ser cobrado por algum jovem e irritadiço editor online a simplesmente copiar uma notícia de um outro portal ou meio de comunicação e a republicá-la com algumas palavras trocadas o suficiente para garantir uma negação plausível de puro plágio. Há uma série de questões éticas envolvidas nesse gesto, e se você conseguir levantá-las e ser ouvido, meus parabéns, você é um jovem herói da profissão, uma vez que praticamente um bando de gente mais velha já fez o mesmo nos últimos três ou quatro anos.
MÉTRICAS – Se você for trabalhar na TV ou no rádio, não há uma real novidade no que direi agora, uma vez que a preocupação com o alcance e a audiência sempre foi parte do trabalho num veículo de mídia eletrônica. A questão é que, depois que os jornais impressos praticamente morreram e precisaram direcionar seus esforços para a construção dos seus portais online, a “métrica” virou uma grandeza absoluta também para os jornais, e o prazo, que costuma ser mais dilatado no jornal diário, foi substituído pela ideia de que não há mais prazo, o deadline é o mais rápido possível para ir ao ar o quanto antes e surfar no engajamento. Métricas são o que realmente interessa no jornalismo corporativo, porque são esses números que podem ser usados para convencer anunciantes de que é válido pôr seu dinheiro na velha mídia quando um guri no TikTok alcança mais gente dançando 15 segundos diante de uma porta de garagem ao som de algum sucesso do momento. Aliás, as métricas são responsáveis por um dos fenômenos mais paradoxais do atual jornalismo, a “indignação que divulga”. Não é por acaso que grandes portais têm contratado cada vez mais gente tosca com um entendimento do idioma abaixo do basilar e uma compreensão nula da realidade. Esse tipo de visão de mundo produz opiniões furadas mais rápido que uma parafusadeira industrial, mas a indignação de quem não concorda o leva a compartilhar o link do texto, ou seus trechos, amplificando o alcance e fazendo “as métricas” baterem lá no alto, o que, ao contrário de enfraquecer, fortalece a posição do colunista junto ao veículo, já que ele tem a capacidade de sempre “produzir engajamento” ao abordar “tópicos que pegam na veia”. Uma das tarefas de vocês enquanto jovens futuros jornalistas, lamento dizer, será tentar explicar isso para todos os seus amigos não jornalistas (e mesmo para alguns deles), apenas para vê-los, sem sucesso, compartilhar o texto ofensivo até virar tendência etc. É frustrante, mas ninguém disse que a vida era fácil.
QUINHENTOS – Também chamada por seu “nome completo” Matéria 500 ou Pauta 500, é, basicamente, um texto que serve aos interesses da casa, ou seja, da redação ou da empresa que a controla – muito comum quando as grandes empresas de comunicação espraiam seus tentáculos por ramos diversos e você pode ter, sei lá, exemplo hipotético, um jornal cujos principais donos também são os proprietários de uma… digamos, construtora. Ou a própria empresa de comunicação detentora do jornal tem um ramo que é uma firma de eventos de todo tipo. No primeiro caso, pode estar certo que notinhas sobre empreendimentos da casa vão parar na coluna de algum nome de confiança. No segundo, pode contar com uma série de matérias para bombar qualquer show produzido “pela casa” – aliás, quanto mais a aposta parecer furada e menos ingressos estiverem sendo vendidos, pode contar com um número cada vez maior de matérias 500 exigidas pelo comercial para bombar o potencial fracasso. Eu sei que agora eu deveria largar aqui a etimologia da expressão, mas eu realmente não sei, então se aparecer alguém aí que saiba, cartas para a Sler. Alguns jornalistas mais veteranos do que eu, um deles, em particular, meu professor, um grande picareta que não direi nome, espalham aos quatro cantos a lenda de que as redações de antigamente eram tão combativas que ninguém fazia matéria 500. Não sei, a 500 já era uma realidade e já caía na mão dos repórteres quando eu comecei no jornalismo, nos anos 90, época em que muitos dos atuais estudantes de jornalismo nem havia nascido ainda. Não confundir a “matéria 500”, que é uma ação, a produção ativa de algo, com o silêncio interessado que muitas vezes um veículo que também tem conexões com uma, digamos, construtora, levanta em assuntos como protestos por preservação de estruturas urbanas ou de áreas verdes. O jornal deveria noticiar porque os movimentos são notícia. Ao mesmo tempo, a empresa construtora-irmã está interessada na concorrência. Aí na verdade a solução é a boa e velha gincana em que você peneira cem entrevistados para achar UM que seja a favor e apresenta duas opiniões discordantes como equânimes.
Como eu prometi no título, esse era um breve jargão. Se quiserem mais, compartilhem o texto manifestando o interesse e quem sabe eu faça outra série…