Chegamos ao último mês de um ano turbulento e os fragmentos do noticiário diário das últimas semanas de novembro me fazem pensar. Para além dos fenômenos climáticos inquietantes, está difícil decifrar/absorver/entender atitudes altamente discriminatórias e agir, o que é urgente e necessário!
– Os registros de preconceito racial mais do que dobraram este ano no Rio Grande do Sul. O protagonismo negro incomoda muita gente. Recentemente, uma professora denunciou o desrespeito de um aluno em sala de aula. O que leva um estudante a agredir alguém por conta da cor? Que soberba é esta? A “casa grande” pode espernear, e, como vimos, já está, mas agora não tem volta.
– A violência não poupa ninguém. Uma casa geriátrica clandestina em Taquara (RS) mantinha idosos em cárcere privado, sem higiene, sem água, com alimentação restrita, sem acesso ao cartão do banco, jogados de qualquer jeito no local. Dez foram resgatados. Em dois meses, cinco morreram. Descobertos, os donos fugiram. E agora?
– Depois de perdas imensas, pessoais, coletivas, econômicas, emocionais, a comunidade do Vale do Taquari (RS) ainda segue em busca de desaparecidos, do equilíbrio, da reconstrução de vidas e conta com a solidariedade de pessoas anônimas que deixam o conforto de suas casas para ajudar. Além dos mutirões de limpeza e das doações, há sempre um ombro para amparar a dor e uma palavra amiga na retomada difícil do cotidiano. Raios de luz e humanidade que emocionam.
– Mais de 670 mil pessoas prejudicadas com as cheias provocadas pelas chuvas. E os relatos são comoventes.
– As águas do Guaíba quase extrapolaram o muro do Cais Mauá em Porto Alegre. E a região das Ilhas ainda tinha mais de 140 pessoas desabrigadas no dia 28 de novembro.
– As chuvas e os temporais danificaram estradas e mais de 70 mil propriedades rurais tiveram prejuízos nas plantações.
– O excesso de chuva provocou o desabamento de um prédio em Gramado e as rachaduras no solo da região preocupam. Mais uma tragédia ambiental a ser investigada.
Todos os sinais estão dados em diversos lugares, no Brasil e no resto do mundo.
É visível! É lamentável! É triste!
Mas enquanto as tragédias acontecem, o prefeito de Porto Alegre parece só estar interessado em passar os compromissos adiante. Transferir para o setor privado a responsabilidade de serviços essenciais para a população, como o transporte púbico, para dar apenas um exemplo, é covardia. É não se importar com o cotidiano dos trabalhadores, dos estudantes, de quem depende unicamente de um ônibus para se deslocar. Mas quem está preocupado com a população?
No sul, chuvas fora da média. Cheias, temporais, desabamentos. Na Amazônia incêndios florestais, seca intensa e falta de água potável. Mas o descontrole não é só do meio ambiente.
A violência, a miséria, a injustiça social, o racismo, a impunidade. A cobiça e o abuso de poder já ultrapassaram todos os limites possíveis. As manchetes cotidianas escancaram uma realidade que fica impregnada na nossa pele, mas já não nos espantamos. Nossos olhos parecem habituados com o desespero de alguns olhares e a apatia de milhares de rostos. Nossos ouvidos já não estranham o atordoamento de algumas vozes e o silêncio da maioria. Nossa boca acostumou-se a dizer o óbvio, repetir frases feitas ou calar. Nosso corpo absorve o cansaço dos corpos famintos e desesperançados que cruzam as ruas em busca de quase nada.
Nossa consciência, às vezes, lateja, mas logo arruma um jeito de amortecer.
Tudo é tão avassalador que já não resistimos ao menor contratempo. Não temos quase fôlego para tanto. Seguimos, mas não chegamos a olhar com olhos bem abertos para o nosso interior. Sonhamos com o amanhã de braços cruzados. Teorizamos, é verdade, mergulhados nas causas além de nós, debruçados nas nossas janelas, de onde vemos tudo de um jeito passivo, enquanto disfarçamos a implacável impotência que nos assalta. Embrutecemos diante de tanta impossibilidade e nos escondemos na teoria? É sempre bom lembrar que * “qualquer desatenção pode ser a gota d´água”, como diz a música de Chico Buarque, compositor que sempre cantou o Brasil com olhos de quem vê e diz!
Precisamos recupera a delicadeza perdida.
* “Gota d´água” é o título de uma peça de teatro de Chico Buarque e Paulo Pontes. Foi escrita em 1975 e publicada em livro pela Editora Civilização Brasileira. É claro que naquele ano foi preciso negociar com a censura alguns cortes no texto para o espetáculo subir no palco. No prefácio do livro os autores escreveram: “O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda preocupação de Gota d’Água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira“.
Foto da Capa: Secom/São Leopoldo