Há na Polícia Federal um processo administrativo que pode levar à suspensão dos salários de Anderson Torres. A tramitação está avançada. E os pagamentos a Torres, delegado da Polícia, deverão ser interrompidos nas próximas semanas. Há um ranger de dentes entre aqueles que o ex-ministro parece favorecer e proteger, como o ex-presidente Jair Bolsonaro. Há precedentes para o corte do salário. Casos de policiais federais que, investigados, tiveram salários suspensos antes mesmo de condenações pela Justiça. Não há nada “fora da curva”, ponderam, na interrupção dos salários de Anderson Torres. Há respaldo jurídico e administrativo para tal.
Aliados do ex-presidente da República têm ligado semanalmente para familiares do ex-secretário e ex–ministro da Justiça para monitorar sua “situação emocional”. Os contatos aumentaram com as notícias de que o ex-ministro está depressivo, chora muito e já perdeu 14 quilos nos três meses que está preso. O responsável pela defesa de Anderson Torres é Eumar Novacki, ex-chefe da Casa Civil do governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB). Anteriormente, o advogado do ex-ministro da Justiça era Rodrigo Roca, que tinha uma relação mais próxima com a família do ex-presidente da República. Com a saída de Roca, pessoas ligadas a Bolsonaro teriam aumentado o temor de que Anderson Torres, cansado de estar na prisão, poderia fazer delação premiada ou mesmo mudar versões dadas anteriormente sobre a minuta golpista encontrada na sua casa em Brasília.
Porém, a suspensão do salário pode significar pressão adicional a ele pelos efeitos sobre a família. A mulher do ex-ministro, Flávia Torres foi exonerada em janeiro do cargo comissionado que exercia na Câmara Legislativa do DF. E atualmente, no Banco do Brasil, recebe menos que os R$ 10 mil do emprego anterior. O casal tem três filhas, de 9, 11 e 13 anos. Anderson Torres está preso desde 14 de janeiro por determinação de Alexandre de Moraes, do STF.
A suspeita é que o ex-ministro de Bolsonaro tenha sido omisso e facilitado as invasões dos Três Poderes. Na ocasião, ele atuava como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. No dia das depredações, estava de folga nos Estados Unidos. Em sua casa, foi encontrada uma suposta minuta de teor golpista cuja procedência é investigada. Nesta semana, o deputado Eduardo Bolsonaro fez um apelo pela soltura de Torres, que tem quadro de depressão. E afirmou que, se “algo de pior” acontecer ao ex-ministro, “a conta será da Justiça”. O parlamentar ponderou que o Ministério Público Federal se manifestou pela revogação da prisão de Torres. O Governo Lula aposta que o ex-ministro é a chave para vincular os atos de 8 de janeiro a Jair Bolsonaro. Na CPMI, a estratégia dos governistas é centrar artilharia em Torres.
A dose de Morfina
A independência entre os Poderes e a legitimidade do processo eleitoral são eixos da democracia brasileira e foram, nos quatros anos do mandato de Bolsonaro, fustigados rigorosamente pelo então presidente da República. Agora, ele é investigado como eventual autor intelectual da tentativa de golpe e instigação aos crimes cometidos na depredação dos prédios dos três poderes em Brasília no dia 8 de janeiro. Um milhar foi preso e outra sete centenas podem ser denunciadas por crimes como golpes de Estado. Porém, sua explicação à Polícia Federal é singela. Ele, atendido na véspera num hospital nos Estados Unidos, onde passou uma temporada, por obstrução intestinal, teve aplicada uma dose de morfina. Seria essa droga que o teria feito perder o senso da razão e expor o vídeo, que retirou três horas depois.
No pedido de inclusão do ex-presidente na investigação, a Procuradoria-Geral da República aponta um vídeo postado por ele dois dias depois do acontecido, a 10 de janeiro, que dizia ter a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva sido uma escolha do Supremo e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e não da população. Em depoimento à Polícia Federal na quarta-feira (26), Bolsonaro alegou que fez a postagem, logo apagada de seu perfil, por engano e sob o efeito de remédios. O remédio seria uma dose mínima de morfina, incapaz de provocar delírios a ponto de perder o juízo. A publicação do vídeo está longe de ser a primeira atitude favorável ao golpismo por parte de Bolsonaro. Admirador confesso das políticas do ex-presidente Donald Trump nos Estados Unidos, onde lá os eleitores também invadiram o Congresso contra o resultado das urnas, em 6 de janeiro de 2021.
Em janeiro de 2021, um dia após a invasão do Congresso americano, Bolsonaro previu a seus apoiadores um “problema pior” no Brasil, caso o sistema eleitoral não fosse alterado. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse ele a apoiadores no Palácio do Alvorada. Naquele momento, Bolsonaro defendia que fosse implementado no país um sistema de impressão de comprovante do voto, proposta sem apoio nem no Congresso, nem do Supremo, inclusive por motivos de segurança do sigilo do voto.
O então presidente, portanto, condicionava a aceitação do resultado eleitoral a uma condição difícil de se realizar. Em agosto de 2021, a Câmara rejeitou a PEC do Voto Impresso, uma proposta de emenda constitucional que foi desaprovada por lideranças de partidos da esquerda à direita. Mais tarde, o próprio Bolsonaro disse que a transparência das eleições não dependia da impressão de comprovante. Ele continuou, porém, repetindo que só aceitaria o resultado eleitoral se as eleições fossem “limpas e transparentes”, sem especificar a que se referia.
Alvo de diferentes inquéritos no Supremo Tribunal Federal sob suspeitas de crimes relacionados a desinformação e atos antidemocráticos, Bolsonaro com frequência espalhou desconfianças infundadas sobre o sistema eleitoral sob a forma de meras dúvidas jogadas no ar, para uma audiência de centenas de milhares de pessoas.
Foto da Capa: Wilson Dias / Agência Brasil