O racismo, mais uma vez, foi um dos temas em destaque na mídia e nas redes sociais essa semana. Primeiro, a polêmica criada em torno das piadas do humorista LL, que teve um show removido do YouTube por decisão judicial que o proibiu de manter “conteúdo depreciativo ou humilhante a qualquer categoria considerada minoria ou vulnerável”. A decisão dividiu humoristas e os ditos formadores de opinião, sendo muito criticada por alguns e festejada pelos defensores da causa antirracista.
No domingo, o jogador Vinicius Jr., do Real Madrid e da Seleção Brasileira, foi mais uma vez vítima de racismo em uma partida de futebol pelo Campeonato Espanhol, sendo expulso de campo após sofrer agressões verbais e físicas de torcedores e jogadores do Valência. O caso recebeu atenção do governo brasileiro e o craque teve ampla solidariedade do meio esportivo e dos ditos formadores de opinião e influencers de todo País, coisa rara de acontecer quando o fato se dá nos nossos gramados.
A diferença de tratamento entre os dois casos causou revolta em muitos negros ativos nas redes sociais. Lázaro Rosa twittou: Passou pano para o comediante racista e agora está se solidarizando com o Vini Jr? Que canalhice, hein?
Levi Kaique Ferreira, outro produtor de conteúdo que trata bastante do racismo, também se dedicou ao assunto:
Sabe as piadas que o Léo Lins faz em seus shows e vocês tavam defendendo como “liberdade de expressão”… Pois bem, elas naturalizam comportamentos como os dos racistas espanhóis contra o Vini Jr. no estádio. A maioria das ofensas tem o mesmo teor das piadas. Diminuir, ridicularizar e desumanizar pessoas negras.
Uma pergunta que me faço nessas situações é o que faz um caso ter uma visão que beira à unanimidade enquanto o outro divide muitas opiniões? São essas reflexões que divido com vocês na coluna desta semana.
Conheço há tempos o humorista em questão (aquele que tem o mesmo sobrenome do Ivan Lins). Seu repertório tem falas depreciativas de gordos, judeus, negros, mulheres, pessoas com deficiência e autistas. Lembro de uma fala dele que ridicularizou autistas, judeus e o Holocausto ao mesmo tempo. Autistas, pais e mães de autistas e entidades representativas têm constantemente criticado suas falas públicas agressivas que são acusadas de perpetuar estereótipos e preconceitos. Uma lógica de bullying: vamos fazer piada ridicularizando quem é diferente.
Para falar de uma forma mais séria sobre o tema, uma boa ideia é recorrer a obra de Adilson Moreira, que publicou livro sobre o racismo recreativo e o aponta como uma forma de discurso de ódio. Em entrevista, assim ele definiu:
O conceito de racismo recreativo designa uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidade em relação a minorias raciais. O humor racista opera como um mecanismo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo tempo permite que pessoas brancas possam manter uma imagem positiva de si mesmas. Elas conseguem então propagar a ideia de que o racismo não tem relevância social. Não podemos esquecer que o humor é uma forma de discurso que expressa valores sociais presentes em uma dada sociedade.
Alguns enxergam essas falas preconceituosas como apenas mais uma piada ruim, que pode ser evitada se deixarmos de ouvir seu criador ou deixarmos de falar sobre isso – lembrando a argumentação de que o racismo vai acabar se “deixarmos de falar sobre isso”. E isso não é mera coincidência.
Já as vítimas dessa falas, veem nelas uma agressão sob a forma de humor. O custo social de ser abertamente racista no Brasil é muito grande, fazendo com que esse preconceito tenha que ser oblíquo e dissimulado, sendo uma piada mais um de seus disfarces. Como se uma risada ao fim desfizesse preconceitos quando, de fato, os aprofundam.
Outros vão reclamar que a restrição ao preconceito recreativo atinge a liberdade de expressão (só isso daria tema para uma ou mais colunas inteiras) além de gritar que estamos diante de um “cancelamento” ou de um “linchamento virtual”. Cá para nós, autistas têm tido matrículas canceladas há bastante tempo em escolas, além de entrevistas de trabalho canceladas. Também são comuns os relatos de negros com vagas de trabalho ou promoções canceladas sem contar os linchamentos reais (que muitos julgam ser algo do passado).
Como o racismo brasileiro atua como uma estrutura invisível, não há pecado maior que revelar essa realidade. Então, todo peso da sociedade se desloca para o denunciante que será julgado severamente e silenciado.
Mas, para a felicidade geral da nação (estou sendo irônico), todas essas nuances e discussões puderam ser deixadas de lado pelas agressões racistas dirigidas ao Vinicius Jr. em um jogo na Espanha. Esses xingamentos são o ponto de partida para uma série de inversões que permitem esquecer o caso anterior e garantir a virtude nacional.
O fato mais óbvio é que os ofensores são espanhóis. Então, passamos a um jogo Brasil x Espanha onde os malvados ibéricos estão maltratando nosso compatriota. Todos brasileiros são parceiros nessa luta contra os antigos colonizadores da outra parte do continente. Somos todos irmãos dizendo “como esses europeus são racistas”. Se o inferno são os outros, como dizia Sartre, os racistas também são. É mais fácil condenar os outros, apontar o dedo para os outros, desde que esse dedo não possa ser virado contra você.
Uma agressão pública, televisionada, globalizada é usada para minimizar e calar todas as micro agressões racistas de nosso cotidiano. Alguns ainda irão lacrar: “Isso que é racismo de verdade”. Assim, todas as humilhações diárias sofridas aqui são silenciadas diante de uma grande agressão externa.
E assim, pulamos de um episódio racista sobre o outro, sempre adiando essa conversa para amanhã. Um amanhã que nunca chega.