Considerando minha idade já provecta para esta profissão de jovens que é o jornalismo, não tenho conhecimento das atuais práticas acadêmicas infligidas à juventude que busca seu diploma nos bancos acadêmicos, mas na minha época de estudante na UFRGS fazia parte do currículo obrigatório ler um livretinho escrito por Cremilda de Araújo Medina em 1986, intitulado Entrevista: O Diálogo Possível. Fazia parte de uma coleção chamada Série Princípios, que era, a bem dizer, a versão da Editora Ática para a Coleção Primeiros Passos que a Editora Brasiliense também publicava na mesma época: umas leituras curtas e bem sumárias para apresentar ao estudante o básico do básico em um determinado campo de conhecimento, do Jornalismo à Psicologia, do Direito à Sociologia etc. — sobre isso, aliás, não deixa de me ocorrer agora que muitos jornalistas da minha geração gostam de deplorar a falta de curiosidade e de esforço intelectual das gerações mais novas, esquecendo que em nossa própria época de estudante lá nos anos 90 já circulava amplamente essa ideia de, na faculdade, “apresentar” questões complexas por meio de uns livretos de 50 páginas que todo mundo já devia ter lido no Ensino Médio se o sistema educacional brasileiro conseguisse dar conta de seus muitos desafios…
Bom, voltando ao livro: era um manual básico que apresentava de modo bastante competente conceitos basilares por trás dessa que deveria ser um dos mínimos denominadores comuns do ofício do jornalista: a entrevista, a ideia de ir lá e falar com alguém. Ela fala sobre pautas, sobre os mecanismos de produção e edição, as várias etapas de edição, primeiramente pelo repórter, depois pelo editor, pela diagramação ou pela duração necessária mais tarde etc. Produto de uma época, contudo, o livro tem uma certa pretensão… “metafísica”, digamos, que eu achava um tanto engraçada já naquela época.
Como ocorre em muito da bibliografia dos cursos de jornalismo, há uma tensão entre uma visão idealizada do ofício que pressupõe alguns postulados difíceis de aplicar no cenário prático em que o jornalista trabalha, principalmente se esse cenário é a estrutura da comunicação no Brasil, que acrescentou vários outros problemas graves aos praticamente insanáveis que ele já tinha nos anos 1980. Assim, embora Medina faça no livro um diagnóstico desse tipo de problemas que é bastante preciso, ela ainda assim adota um tom otimista que aproxima, voluntariamente ou não, uma “boa entrevista” de uma experiência mística. Ela mesmo diz no livro:
“No cotidiano do homem contemporâneo há espaço para o diálogo possível. Estão aí experiências ou exceções à regra que provam o grau de concretização da entrevista na comunicação coletiva. Sua maior ou menor comunicação está diretamente relacionada com a humanização do contato interativo: quando, em um desses raros momentos, ambos — entrevistado e entrevistador — saem “alterados” do encontro, a técnica foi ultrapassada pela “intimidade” entre o EU e o TU. Tanto um como outro se modificaram, alguma coisa aconteceu que os perturbou, fez-se luz em certo conceito e comportamento ou compreensão do mundo. Ou seja, realizou-se o Diálogo Possível.”
Idealização
Faltou a editora no prefácio e o professor na sala de aula explicar que esse texto, portanto, mirava num tipo de entrevista tão raro que provavelmente só alguns jornalistas fariam algumas vezes na vida. E isso naquela época, porque hoje em dia, e esse é o foco deste texto, esse tipo de entrevista praticamente não existe mais na grande mídia – e onde ele poderia existir, nos novos meios eletrônicos, ele também não existe por pura – e eu diria voluntária – incompetência dos seus praticantes.
O que digo aqui, e com o conhecimento de quem acompanhou parte desse processo bem de perto, é que as entrevistas foram se tornando ao longo das últimas décadas eventos muito mais controlados e menos espontâneos do que essa visão namastê idealizada de um “encontro transformador” – o que Medina chamava em seu livro de “diálogo possível”. Tirando aquelas abordagens a anônimos na rua pedindo que deem alguma opinião de improviso sobre um assunto que não dominam (e que por isso mesmo nunca produzem nada que preste para além de encher linguiça em programação de TV ou rádio), a maioria das interações entre entrevistadores e entrevistas é negociada – quanto maior a importância da figura envolvida, maior será o número de assessores e o vaivém sobre quais os temas podem ser abordados ou não. É assim na política, é assim no esporte (fui repórter esportivo no início dos anos 2000, época em que simplesmente pedíamos para falar com os jogadores na saída do vestiário, algo hoje impensável na realidade de zonas mistas e de um ou dois únicos entrevistados pós-jogo).
Mas um ponto em que podemos ver com mais clareza essa relação é no jornalismo cultural, principalmente aquele mais vinculado à indústria do entretenimento. De um certo modo, a entrevista no jornalismo cultural me parece agonizar mais rápido do que em qualquer outro campo do ofício porque parece sofrer um número maior de pressões vindas de outras fontes.
Atores, diretores, músicos, artistas de modo geral hoje em dia são muito mais “blindados” no contato com a imprensa, impondo uma pauta de interditos e permitidos a cada nova entrevista. Aliás, o jornalismo cultural trabalha por demais atrelado à pressão da agenda, e também por isso você só vê entrevistas com alguém que está lançando alguma coisa nova, um livro, um filme, um disco (ainda se lança disco?).
Quando esse jornalismo se volta para um braço particularmente lucrativo da indústria do entretenimento, como o grande cinema americano, por exemplo, entrevistas são, provavelmente, alguns rituais mais inúteis e esvaziados de sentido encenados por jornalistas na tentativa de manter vivo seu ofício meio cambaleante. Some-se a isso um problema que não é do jornalismo, que eu chamo de “doença infantil do spoiler” que acomete o público contemporâneo, e o que temos é um jornalista que não pode perguntar algumas coisas porque é o acordo com o personagem. Ou porque rola um embargo da assessoria. Ou porque o próprio público não quer saber porque pode “estragar a experiência” no caso de algumas obras (sempre fico pensando que tipo de cultura é essa que se assenta na simples surpresa da trama, e portanto é uma cultura de leitura única, jamais considerando a possibilidade de releitura).
Circo vazio
Daí que as entrevistas hoje em dia são parte de um circo em que você convida o entrevistado para jantar, para tomar café, para dar nota pra marca de refrigerante, para brincar de jogos que há algumas décadas eram destinados às crianças convidadas da Xuxa. Aparentemente o que você menos faz a um entrevistado é uma pergunta, mas isso também não é culpa só do entrevistador, uma vez que o entrevistado também não está disposto a abrir alguns focos da sua vida e por isso há as negociações e embargos. A entrevista é inútil. Vamos cantar karaokê no carro.
Em A Agonia do Eros, Byung-Chul Han parte de conceitos de Giorgio Agamben, profanação e secularização, ou seja, o retorno ao uso comum de coisas que haviam sido historicamente tiradas de circulação e reservadas ao sagrado, para refletir sobre o erotismo e o quanto essa dessacralização não provocou, pelo esvaziamento, uma dessensibilização geral que leva a uma escalada de tentativas cada vez mais extremas de provocar uma reação autêntica – e o quanto isso não termina, no fim, resvalando para o pornográfico:
“Hoje em dia estão desaparecendo numa velocidade cada vez maior os espaços e as ações rituais. O mundo torna-se cada vez mais desnudo e obsceno”, escreve ele.
Pois, guardadas as devidas proporções, esse é o caminho também seguido pelo jornalismo naquela que deveria ser sua matéria, a entrevista.
Quente pra caramba
Um dos fenômenos culturais mais recentes das redes de produção conteúdo se chama Hot Ones, uma série de entrevistas disponíveis no YouTube apresentadas por um careca boa praça chamado Sean Evans (foto da capa) e que parte de uma premissa que pode até fazer sentido no papel, mas que na prática é uma forma socialmente aceita de tortura para as massas.
Partindo do princípio de que entrevistas com celebridades são sempre, como comentamos, blindadas e negociadas e todos estão ali mais interessados em criar uma pose do que dizer a verdade, Evans e seu convidado da semana comem numa ordem preestabelecida 10 coxinhas de galinha (ou suas versões veganas, quando necessário). Cada uma delas foi temperada com um molho picante cada mais forte do anterior, até chegar-se ao fim da entrevista com gente chorando, suando em bicas, perdendo a linha de raciocínio, bebendo litros de leite para conseguir retomar um pouco que seja o controle de seu corpo momentaneamente agredido.
Tendo começado com entrevistas com rappers e Youtubers de menor repercussão, o programa ganhou tal notoriedade que hoje astros do primeiro time de Hollywood estacionam por lá para bater ponto quando precisam divulgar alguma coisa. O que me parece interessante e totalmente zoado na coisa toda é que, diferentemente de um Monark da vida, Evans e sua equipe claramente sabem o que fazem. O entrevistador é simpático, bem-preparado, suas perguntas são inteligentes e fruto de pesquisa cuidadosa, a ponto de o circo todo do molho de pimenta e de gente vermelha de suor e quase vomitando parecer um desperdício do trabalho todo. Você se deu ao trabalho de fazer algumas perguntas muito boas aí, cara, então talvez não seja a melhor ideia entupir o convidado de pimenta a ponto de ele não conseguir pensar para respondê-la.
Só que, infelizmente, não. Sem o truque do molho picante, Evans ainda seria o bom entrevistador que é, mas seu canal provavelmente já teria acabado por falta de visualizações, e nem de perto ele receberia tanta gente importante. E o seu público, a julgar pelos comentários no canal, também não parece muito interessado em ouvir o que o entrevistado tem a dizer, mas em ranquear quem “se comportou melhor” sob a pressão da pimenta: quem passou incólume pelo pior molho de todos (uma coisa que aparentemente é pura força bruta química e por isso mesmo é o único molho que nunca mudou de uma temporada para outra), quem fez fiasco, quem nem suou nem bebeu água. Logo, esse programa para mim encapsula de modo fascinante o paradoxo da entrevista na sociedade do espetáculo, principalmente essa em que, como comenta Han, sem rituais ou desconfiada deles, as coisas escalam fácil para o extremo e o obsceno: já que ninguém fala a verdade e todos estão fazendo pose, vai ser divertido transformar a coisa em um espetáculo que se vende pela forma, não pelo conteúdo.
Não é à toa que isso também se tornou um procedimento político.
Talvez com o tempo que os podcasts dedicam para um papo isso pudesse ser contornado, mas aí precisaríamos de profissionais de verdade no comando da coisa, não de amadores preguiçosos, como eu já disse, aliás, neste texto. Há também a academia, onde algumas boas entrevistas são feitas com repercussão restrita.
Sean Evans, um dos melhores entrevistadores contemporâneos, está torturando pessoas com pimenta em vídeos editados de meia hora. E imbecis desinformados como Cris Dias, Monark e Rogério Vilella perdem oportunidades com o microfone aberto por quatro ou cinco horas.
Fico pensando se dá pra salvar esse cenário. Confio em vocês, jovens. Porque de mim, que estou velho, é que solução não virá.