Frequentemente, quando sou convidado a falar sobre gentrificação, antes mesmo de eu começar a minha exposição, as pessoas, ansiosamente, já querem saber sobre o que estaremos falando: qual o significado deste conceito e do que afinal ele trata. Quando começamos a explicar do que trata o conceito, as pessoas então me perguntam: por que utilizar este termo, se temos outros tão conhecidos, para explicar processos de segregação e exclusão social no Brasil? Nada mais natural, portanto, do que começarmos este artigo explicando não só a sua origem, mas também o porquê de termos introduzido este conceito no Brasil.
O termo gentrification foi criado pela socióloga anglo-germânica Ruth Glass, em 1964, para denominar um processo específico, detectado por ela nos anos 1950, por meio do qual algumas áreas residenciais deterioradas do centro de Londres, e ocupadas pela classe trabalhadora, vinham sendo transformadas em áreas residenciais para a classe média (gentry).
No início da década de 1980, eu estava interessado em entender a ocorrência de um processo, já antigo no Brasil, que eu denominara como a periferização da classe trabalhadora. Um processo enraizado nas nossas desigualdades sociais e que vinha moldando a ocupação do espaço urbano de nossas metrópoles de acordo com um padrão de segregação centro/periferia. O primeiro, provido com todos os serviços públicos e privados, ocupado pelas classes de alta renda, e o segundo, situado em regiões cada vez mais distantes e subequipadas, ocupado predominantemente pelas classes de menor renda.
Em meu primeiro contato com o texto de Glass, eu logo percebi que o processo por ela descrito era um velho conhecido nosso, pois em muito ele se assemelhava ao que eu vinha estudando em Porto Alegre. Resolvi então aplicar o conceito a um sério problema que eu havia então começado a pesquisar: a exclusão, no início da década de 1960, das vilas operárias situadas nos bairros Farrapos, Humaitá e Anchieta, situados ao norte da rua Dona Teodora em Porto Alegre e que emprestava seu nome a toda a região ocupada pelas vilas na época.
Estas vilas operárias se formaram na década de 1940, após a instalação de algumas indústrias vindas do centro da cidade para a região. Como as indústrias e os seus funcionários mais categorizados se instalaram ao sul da rua Dona Teodora, nas áreas de cota mais alta e, portanto, menos sujeitas à inundação, não restou outra opção aos operários de menor renda do que invadir, muitas vezes com incentivo do próprio poder público, as áreas de cota de terreno mais baixa e, portanto, alagadiças, sem qualquer valor de localização e valor de interesse comercial situadas ao norte da rua Dona Teodora.
Esta proximidade dos trabalhadores menos qualificados com as indústrias locais propiciava uma vantagem para ambos, empregados e empregadores, pois permitia, aos primeiros, um acesso aos locais de trabalho sem uso de qualquer meio de transporte e um custo zero com despesas de habitação, tendo em vista que as casas eram construídas pelos próprios moradores, e aos últimos permitia, além de uma contratação destes funcionários com salários muito baixos, pois não havia necessidade de incluir estes custos em seus salários, tê-los à disposição para eventuais demandas por jornadas extras de trabalho.
A partir dos anos 1980, o mercado imobiliário e o planejamento urbano começaram a passar por uma grande transformação. Com a inserção do mercado financeiro no mercado imobiliário e no setor habitacional em especial, este mercado tornou-se uma das mais poderosas fronteiras de expansão do capital financeiro, tornando-se um novo e promissor mecanismo de reserva de capital, ganho financeiro e acumulação de riqueza. A partir de então, o solo urbano deixou de ser visto como um bem social para transformar-se em um bem de capital.
Esta mudança no mercado imobiliário trouxe grandes mudanças na estruturação das cidades na medida em que os novos interessados neste mercado passaram a intervir na regulação urbanística e, portanto, na própria reestruturação das cidades, muitas vezes em uma parceria com o setor público e com um grande impacto no desenho e funcionamento das cidades e na vida dos cidadãos. Não é coincidência a declaração recente de um importante agente do setor imobiliário de que a altura das edificações em Porto Alegre deveria ser definida pelo setor privado. Como o neoliberalismo, pensamento dominante no setor financeiro, é um processo eminentemente desigual, não é coincidência um recrudescimento do processo de exclusão das classes da base da pirâmide social brasileira dos centros urbanos para periferias cada vez mais distantes de nossas cidades, criando um território de despossuídos: os pobres sem lugar, que, estruturados pela lógica do abandono, necessitam, como forma de sobrevivência, criar novos processos de subjetivação, sendo presa fácil para as organizações criminosas que dominam boa parte destas regiões periféricas.
A utilização do termo gentrificação, utilizada por nós, já em 1985, como uma corruptela do termo inglês gentrification, foi absolutamente proposital para que pudéssemos manter uma relação direta dos processos que ocorrem no Brasil com os processos que ocorrem mundo afora, e assim dificultar as tentativas das entidades promotoras desses eventos no Brasil de maquiar a ocorrência dos processos de gentrificação utilizando termos tais como: revitalização, renovação, desenvolvimento urbano, etc.
O 4º Distrito é um bom exemplo para demonstrar que a gentrificação é um processo que pode ser operacionalizado de diversas formas, sempre atendendo às demandas dos grupos que operam neste mercado, de acordo com as suas necessidades em um momento determinado e com uma parceria importante do poder municipal. As intervenções ad hoc efetuadas ao longo dos últimos anos na região, inclusive com o auxílio de alterações no Plano Diretor, são suficientes para nos mostrar como a cidade de Porto Alegre perdeu o rumo em seu planejamento.
Carlos Ribeiro Furtado
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Foto da Capa: Tomaz Silva / Agência Brasil