No Brasil, onde o planejamento urbano deveria ser um instrumento importante para a redução das nossas históricas e persistentes desigualdades sociais, atendendo ao que atualmente prescreve o conceito de um desenvolvimento urbano sustentável, ele tem se configurado cada vez mais como um instrumento de manutenção do status quo e de suporte à acumulação desigual do que, propriamente, um instrumento de justiça social.
O Plano Diretor de Porto Alegre, tão eficientemente elaborado sob a batuta de nosso competente e saudoso arquiteto Moacir M. Marques, aprovado em 1979, tem sido sistematicamente desrespeitado com a crescente inserção do mercado financeiro no mercado imobiliário, interferindo negativamente em nossa legislação urbana. Recentemente, ouvi, de um integrante deste setor, uma declaração de que a altura dos prédios da nossa cidade deveria ser definida pelo setor privado. Isto é algo aterrorizante, demonstrando a mais absoluta ignorância da função e finalidades de um Plano Diretor. As cidades são dinâmicas e entendemos perfeitamente que um plano elaborado há mais de quatro décadas deva ser, sistematicamente, revisto e adaptado às novas necessidades urbanas. Mas não podemos esquecer que um Plano Diretor tem objetivos e princípios básicos que devem ser cuidadosamente manejados em suas reformulações. Dois deles posso citar aqui como absolutamente fundamentais e que o leitor, tenho certeza, perceberá claramente a sua importância devido ao estado caótico de nossa capital. O primeiro diz respeito aos índices que controlam e regulam a densidade urbana, e o segundo diz respeito ao meio ambiente urbano, entendido em seu sentido mais amplo tanto com a inclusão de seu ambiente natural quanto o construído.
A densidade urbana, que é medida pelo número de habitantes por hectare, vem crescendo assustadoramente com permissões irresponsáveis, incluindo o desmatamento na sua área intraurbana para a expansão das áreas de ocupação com edificações cada vez mais altas e densamente ocupadas. Da mesma forma, acontece na sua periferia: os desmatamentos ocorrem para a construção destes condomínios horizontais murados que se apropriam de áreas, que deveriam ser públicas, em favor de uns poucos privilegiados. Intervenções que têm consequências negativas não só para o nosso microclima, mas também para o transporte urbano que, já deficiente, torna-se ainda mais complicado, com o aumento de veículos rodando em suas vias cada dia mais e mais esburacadas, e pelo aumento dos trabalhadores jogados na periferia que têm necessidade de utilizar um sistema de transporte com veículos em estado lamentável e que sequer cumprem os seus horários, levando a que os trabalhadores percam cada vez mais tempo de suas vidas em viagens cansativas e absolutamente desconfortáveis para acessar, diariamente, o centro da cidade onde há oferta de trabalho.
Em Porto Alegre, basta pormos o pé na rua para vermos as consequências disso. Com a incapacidade do poder municipal de acompanhar, fiscalizar e manter eficazmente as vias, seja a pé ou de carro, trafegamos como se estivéssemos em uma corrida de barreiras, sem falar na péssima sinalização. Somado a isto, temos uma manutenção lamentável de nossos serviços urbanos em geral. A enchente de 2024 nos diz algo sobre isto. Em relação ao meio ambiente, temos visto frequentemente o corte de árvores, ou mesmo o desmatamento e a depredação de áreas que deveriam ser consideradas um bem de proteção contra desastres naturais e o nosso próprio microclima. Cada vez mais ilegítimo, o planejamento urbano passou a assumir uma roupagem tecnicista que o levou a deslocar-se cada vez mais das práticas sociais. Pensando-se ser possível atuar sobre uma realidade social com atuações ad hoc, resolvendo problemas pontuais aqui e ali, atendendo interesses específicos, como se fosse possível arrumar a cidade desta forma. Estas ações parecem mais improvisos do que planejamento. A cidade funciona como um sistema e, como tal, deveria ser entendida e pensada.
Neste sentido, devemos abandonar esta política de ações improvisadas e retomar o planejamento urbano, com a elaboração de um plano de desenvolvimento urbano que retomasse, com seriedade, a atualização necessária de nosso Plano Diretor de uso e ocupação do solo urbano, mantendo os seus princípios básicos lançados em 1979.
Assim, é necessário sobrepor noções e práticas de planejamento que assumam o caráter político e a importância econômica e social do mesmo. E que assim possam encaminhar os interesses em jogo e acompanhar, com flexibilidade, o processo de mudanças sociais em curso, trazendo, de alguma forma, as demandas da sociedade ao palco da discussão. Isso somente será conseguido por meio de uma democratização do uso do espaço e do acesso aos seus benefícios de forma mais igualitária, com uma participação mais presente de todos os agentes sociais, econômicos, etc. na agenda política.
A efetividade do planejamento está na sua capacidade de expressar as forças sociais, por um lado, e de agir sobre a estrutura econômico-social da sociedade, por outro. Neste sentido, devemos ter uma visão política do espaço, entendido como o locus privilegiado da luta de interesses, e não apenas como palco de uma acumulação “eficiente” para apenas alguns agentes econômicos. Um sistema urbano ineficiente gera deseconomias que afetam, não somente, as camadas sociais de menor renda que se espalham pela periferia, mas todas as classes sociais e, também, a economia local. Diariamente vemos as críticas à nossa infraestrutura urbana municipal e também regional, que encarecem o preço final de nossos produtos. Um sistema urbano ineficiente gera perdas de tempo, desgaste prematuro de sua infraestrutura, aumento do custo de transporte, etc.
Embora a busca de uma maior eficiência do mercado seja uma necessidade, os ganhos de produtividade decorrentes alcançados não devem ser absorvidos somente por alguns agentes econômicos, mas, na medida do possível, pela população como um todo. O debate sobre organização e reorganização urbana necessita parar de repetir esta cantilena da visão apolítica do território, dissociada dos problemas sociais e preocupada primordialmente com intervenções pontuais como, por exemplo, as que foram efetuadas em função das duas copas (das confederações e mundial de futebol), descoladas de uma visão global das cidades e amparadas apenas em demandas específicas para atender eventos e interesses específicos.
Carlos Ribeiro Furtado é arquiteto formado pela UFRGS/RS com especialização em planejamento urbano e regional na USP/SP, planejamento urbano e habitacional no Bown Centrun/Rotterdam, mestrado em economia urbana na UCL/londres e doutorado na UFRGS.Tem projetos de arquitetura, nas áreas comercial, industrial e residencial e Intervenções urbanas na instalação de hidroelétricas, mineração, recuperação urbana e loteamentos. Intervencoes de reassentamento habitacional em áreas rurais de várias cidades do Brasil.
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Foto da Capa: Tomaz Silva / Agência Brasil