Dia: 11 de novembro de 2022. Ocorre o Primeiro Seminário da Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre. O objetivo foi aprofundar o debate sobre a lei do plano diretor municipal. Eu estava lá, entre os participantes, em meio às palestras, exposições técnicas e debates sobre o passado, presente e futuro urbano da cidade. À época, a consultoria Ernest & Young foi contratada em setembro daquele ano – com dinheiro público, para explicitar o óbvio ululante — por humildes R$ 6.504.447,84 (confira aqui). Segundo a Prefeitura, a Ernest & Young, que atua em mais de 150 países, “será responsável pelos diagnósticos, estudos territoriais e simulações de cenários urbanos, com o objetivo de atualizar o modelo de organização do território e o sistema de planejamento da gestão da política urbana da Capital. Pelo contrato, a Ernst & Young disponibiliza consultores em planejamento e desenho urbano, infraestrutura, mobilidade, direito urbanístico, área ambiental e economia/administração.” (confira aqui).
Dia: 22 de julho de 2023. Ocorre o Seminário da Leitura da Cidade da Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre. A consultoria Ernest & Young, em um dos raros momentos ao longo do processo, traz seis especialistas para o palco para apresentarem “a leitura da cidade”, além de outros mencionados pelo coordenador geral que não tiveram o privilégio de subir. A expectativa é altíssima. A plateia está cheia. Especialistas da sociedade civil também estão a postos. Em meu humilde imaginário já consigo visualizar dados, informações, diferentes níveis analíticos, interpretações e abordagens críticas em relação aos eixos selecionados para o debate. Minha expectativa não é à toa. Tenho uma boa ideia do montante (R$ 6.504.447,84) uma vez que também atuo com captação e elaboração de projetos para o terceiro setor. Também tenho consciência do que esse valor (R$ 6.504.447,84) pode produzir e de entregar ao seu cliente, no caso, nós, cidadãs e cidadãos ansiosos pela melhor análise que uma cidade pode contratar e receber.
Sete meses após a contratação de uma das melhores consultorias do planeta e uma imersão profunda nos dados e informações, qual a qualidade de produto que os cidadãos, muitos deles pesquisadores, docentes e especialistas oriundos de vários segmentos da sociedade, esperam?
Voltemos ao dia 22 de julho de 2023. Sábado ensolarado. O evento, que havia foi transferido de local poucos dias antes, estava cheio. Os participantes da sociedade civil se organizaram e compartilharam a mudança de local eficazmente. Horário: 09:00h. Palestrantes da Ernest & Young e membros da Prefeitura posicionados. Começa a apresentação da “Leitura da Cidade”. Durante duas horas, toda a força e potência da consultoria pode ser vista pelos atentes participantes, inclusive este que vos narra. Horário: 11:00h. A “Leitura” por parte da consultoria, se encerra e é aberto aos inscritos da sociedade para “manifestações” — e não para discussão ou debate. Não foi um diálogo, não sociologicamente, no sentido habermasiano de uma ação comunicativa bilateral.
Assim que o primeiro inscrito tem acesso ao microfone para sua manifestação de 01 minuto e 30 segundos (esse foi o tempo estabelecido no método da Ernest & Young em toda sua sabedoria dialógica). A partir desse momento, foi como estar em uma montanha-russa. As denúncias foram de vários tipos: da falta de dados e informações até dados defasados e desatualizados, de falta de inclusão das informações produzidas nas “oficinas temáticas” — que contou com a presença de vários dos presentes, e mais uma vez, este colunista — até o precário nível dos dados apresentados. Dados, aliás, pouquíssimos e mesmo assim sem análises de qualquer espécie. Ao longo de uma hora, até 12:00h, foi um massacre.
Por um lado, é difícil acreditar que uma consultoria reconhecida internacionalmente não saiba como planejar, organizar e conduzir um seminário para um público especializado. Ou será que as cidadãs e os cidadãos foram classificados como pessoas sem cognição, ou pior, como coisas sem nenhum tipo de consciência crítica? Por outro lado, uma consultoria, cuja especialidade está ancorada em “negócios e em mercados de capitais” e não em comunidades pobres e sociedades vulneráveis, ter enquadrado esse evento como um simples protocolo, não surpreende. Um evento isento de qualquer tipo de conteúdo que tenha a redução das desigualdades sociais e ecológicos como horizonte de ação. Todavia, essa última hipótese é assustadora.
Enfim, essa “Leitura da Cidade” atendeu a qual público, a qual interesse? Talvez, pelo modesto montante de R$ 6.504.447,84, seja pouco para entregar algo melhor para a sociedade. Talvez seja esse mesmo o valor das coisas em uma metrópole como Porto Alegre.
P.S. 1: A partir do próximo mês, a terceira etapa começará, que envolve o debate de propostas para a Revisão do Plano Diretor (confira aqui) .
P.S. 2: na página inicial da consultoria Ernest & Young, na coluna “Sobre nós”, diz: “Na EY, nosso propósito é construir um mundo de negócios melhor. Os insights e serviços que fornecemos ajudam a criar valor a longo prazo para clientes, pessoas e sociedade, e a construir confiança nos mercados de capitais.” (veja aqui, grifo deste colunista). Acredito que a “EY” está atento à “confiança nos mercados de capitais”, mas não às cidadãs e aos cidadãos da cidade.