“A Educação das Relações Étnico-Raciais é um processo que começa desde sempre, antes do nascimento, e segue pela vida. As crianças não vivem unicamente nas escolas, nas famílias, ou mesmo com os amigos e os vizinhos. Talvez residam em bairros em que haja predominância e um pertencimento étnico-racial, mas a gente sabe que predominância não é exclusividade.”
A autora dessa frase é referência nacional. Mulher com atuação pioneira no Conselho Nacional de Educação. Tem papel histórico no país. Doutora Honoris Causa pela UFRGS, é gaúcha, porto-alegrense, nascida na Colônia Africana*.
Estou falando de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Sim, a Petrô, como é carinhosamente lembrada por pessoas que nela se inspiram para promover a Educação para as Relações Étnico-Raciais. É o nome dessa destacada professora que foi dado ao selo do mais recente reconhecimento nacional em Educação obtido pela capital gaúcha.
Desde sexta-feira, 28 de março, o site da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre estampa a notícia “Prefeitura recebe selo nacional por valorizar educação das relações étnico-raciais”. O reconhecimento do Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), contempla cidades que valorizam e disseminam iniciativas das redes de ensino para execução da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq). E esse resultado pode melhorar: as cidades contempladas com o Selo Petronilha estão habilitadas a inscrever, em processo seletivo, iniciativas de promoção da equidade racial na educação, implementadas pelas redes de ensino. As 20 melhores receberão R$ 200 mil em recursos para serem aplicados na manutenção, fortalecimento, sistematização e disseminação das suas práticas.
Mas quem, de fato, promove a Educação para as Relações Étnico-Raciais na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre? As educadoras. Sim, são elas. Sem seu poder de mobilização e entendimento do impacto social de promover uma educação que abranja exemplos que rompem com o olhar colonialista e a normatividade branca que impera nos referenciais pedagógicos, a cidade de Porto Alegre – para além da instituição Prefeitura – não teria obtido esse selo. O Ministério da Educação congratula as educadoras que atuam em nossa cidade.
São elas que levam a mancala para a sala de aula, leem contos africanos, soltam seus cabelos crespos e exibem com altivez suas tranças afro, embelezam seus corpos e ambientes de estudo com capulanas e fazem do som do tambor um instrumento pedagógico para que crianças e jovens conheçam a riqueza das religiões de matriz africana. Sim, essas educadoras, especialmente negras, gênero predominante dessa luta (educadores e pessoas brancas aliadas, sintam-se muito bem representadas nessa citação), que conseguem construir conhecimento, pertencimento e fortalecer a autoestima de muitas crianças, adolescentes, adultos e idosos. Esse trabalho rico começa na Educação Infantil e se estende à Educação de Jovens e Adultos.
Porto Alegre tem profissionais da Educação que vivem, debatem, constroem e educam para a ERER há mais de 20 anos. Esse trabalho começou em 2004, e sua trajetória é permeada por desafios, lutas, alegrias, parcerias, formação continuada e, com certeza, resistência. Resistência e perseverança para passar por diferentes governos, ideologias, adversidades e entender que a causa da educação antirracista é maior.
São educadoras que precisaram, no início dos anos 2000, defender suas posições conquistadas no primeiro concurso com cotas raciais para profissionais da Educação. São educadoras que, inspiradas nos versos e no ativismo do poeta Oliveira Silveira e no brio de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, desenvolveram iniciativas como os Espaços Educativos Afro-Brasileiros e Indígenas (EEABIs), presentes em 85 estabelecimentos da rede municipal.
Cada passo foi trilhado de forma coletiva. Uma vitória importante a ser recordada é a Resolução Nº 24 do Conselho Municipal de Educação, vigente desde julho de 2022. Nela, estão fixadas as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana, Quilombola e Indígena no Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre.
Essa trajetória está documentada, em depoimentos e etapas históricas, no livro “Educação para as relações étnico-raciais em Porto Alegre: memórias, vivências e perspectivas da Rede de Ensino Municipal”, concluído em dezembro de 2024. Por enquanto, está disponível apenas no formato e-book, merece ser impresso e distribuído nas mais de 300 unidades de Educação próprias e conveniadas do município, ampliando o acervo de bibliotecas e enriquecendo os EEABIs com os depoimentos dos protagonistas presentes desse processo.
Meninas e meninos, garotas e garotos, mulheres e homens negros são empoderados pela Educação que os torna conscientes de sua rica cultura e ancestralidade. Ao mesmo tempo, a predominante parcela branca da população (74% de acordo com o censo 2022 em Porto Alegre) tem a oportunidade de fazer seu letramento racial e entender que “predominância não é exclusividade”, como nos ensina a professora Petrô.
Parabéns, educadoras da Rede Municipal! Esse selo é para vocês. Sigam avançando com sua sabedoria e todos os meios disponíveis, da articulação política aos recursos pedagógicos, em nome de uma educação integral, disruptiva e inclusiva.
(*) A Colônia Africana, onde nasceu a professora Petronilha, é conhecida atualmente como Bairro Rio Branco. Essa localidade reuniu diversas famílias negras desde os anos 1880 até a década de 1940, pelo menos, até que sucessivos aumentos de impostos e demolições de prédios, protagonizados pela Prefeitura de Porto Alegre, entre outras formas de exclusão social, deslocaram-nas para localidades periféricas da Capital. Para acessar mais informações a respeito, busque pelo livro “Territórios negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): Geografia histórica da presença negra no espaço urbano”, de Daniele Machado Vieira. A publicação resulta de sua dissertação de mestrado defendida na UFRGS.
Eduardo Borba é jornalista graduado pela PUCRS, pai, integrante de ações para promover a Diversidade, Equidade e Inclusão, como a Odabá - Associação de Afroempreendedorismo e a Comissão Antirracista do Colégio João XXIII. Mestre em Comunicação Social, é especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.
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Foto da Capa: Arte Design de Maria