Uma das obras mais esperadas deste ano é a sequência do longa “Coringa”, da DC Studios, prevista para outubro deste ano. Gosto muito da atuação de Joaquin Phoenix, mas quero ver mesmo, é a oscarizada Lady Gaga como a vilã Harley Quinn (Arlequina).
Há muitos boatos na mídia de que, assim como Phoenix, ela estaria usando “o método Stanislavski” de atuação, que explora experiências pessoais do próprio ator para auxiliar na compreensão e interpretação do personagem. De fato, é bem interessante, mas também pode ser muito perigoso, considerando a saúde mental do artista. Já vimos atores incorporarem tanto o personagem, a ponto de se perderem de si mesmos.
Mas onde tem Gaga sempre encontramos uma brecha para falarmos de saúde mental. A artista procura falar do tema há muito tempo, compartilhando suas batalhas internas e externas com seus fãs, os “little monsters”, combatendo estigmas e estimulando empatia, suporte mútuo.
E para além de “Coringa 2”, Gaga está trabalhando na edição do filme “The Chromatica Ball”, sobre a turnê do seu último álbum, “Chromatica”, lançado em 2020. Você já ouviu Chromatica?
Justamente em 2020, Gaga retornava triunfante após altos e baixos em sua carreira. As composições desse álbum foram escritas por ela, a partir de experiências muitos dolorosas e intensas. Abusos, depressão, ansiedade, uso abusivo de álcool, seu relacionamento complexo com a indústria e a fama, superações, conquistas, liberdade.
Nos momentos mais difíceis, a música a resgatava. E, com essa obra, desejava fazer o mesmo… queria fazer o mundo dançar e sorrir com suas músicas, mesmo nos momentos mais tristes.
Assim, enquanto artista criou com a participação de outros colegas (como Ariana Grande, Elton John e o grupo de k-pop Black Pink) esse álbum lindo, com letras impactantes e intimistas, com uma pegada retrô dançante, tentava transmitir essa possibilidade a seu público: podemos dançar ainda que no escuro!
Mas o álbum foi adiado por sete semanas. Vivíamos em um tempo bastante sombrio (ou o que talvez fosse o começo dele). Os que podiam estavam em isolamento devido a pandemia do Covid-19.
Gaga já atravessava seus próprios fantasmas e feridas, fazendo algo com tudo isso e desejando entregar seu trabalho, seu propósito. Finalmente, em maio de 2020, no olho do furacão, mostrou lindamente como a arte pode nos salvar.
Em 2020 e nos anos seguintes, ouvi muito as faixas “Rain on me”, “Alice” e “Free Woman”. Na verdade, ouvi muito o álbum todo. Era quase uma necessidade.
Mas escrevo aqui pensando mais em uma música que acredito que fala de algo valiosíssimo. Toca mais ou menos ao meio do álbum. A faixa “911” (equivalente a “192” aqui no Brasil).
Gaga fala de um episódio onde precisou de ajuda, inclusive de medicamentos, pra lidar com seu sofrimento. Aqui, canta sobre uma urgência e emergência, que não só diz sobre saúde mental. Ela nos provoca e nos coloca bem de frente com uma questão vital: apesar dos pesares, ainda somos responsáveis por nossas escolhas, nossos atos e até mesmo com o que fazemos e repetimos em relação ao nosso sofrimento. Assim como também somos responsáveis por reconhecer e pedir ajuda, quando não mais conseguimos lidar sozinhos.
Ela canta:
“Meu maior inimigo sou eu desde o primeiro dia. Disque 911”.
Falando sobre inimigo…
Quando alguém, por algum motivo ou sintoma, acaba por renunciar a seus desejos (sonhos, objetivos e coisas que lhe dão algum sentido à vida, mas que também exigem escolhas e responsabilidade), parece viver uma vida meio irrelevante e sem gosto. Aquela coisa de não estar vivendo, mas sobrevivendo, sabe?
E uma saída comum para diminuir a insatisfação consigo mesmo (justamente por não se autorizar a seguir com o que lhe proporciona a vida) é encontrar em algum outro, todo o mal a ser combatido e lançar nesse outro, por assim dizer, toda sua energia de combate.
A arte, a cultura, a filosofia, a psicanálise, nos ajudam muito a nos questionar, nos escutar, criar, exteriorizar, fazer algo com o que resta de nós mesmos e com o que resta dos outros em nós. E, assim, não fica difícil perceber que boa parcela de nossos maiores inimigos nada mais são do que nós mesmos (uns mais carrascos e superexigentes que outros).
Se não conseguimos olhar minimamente pra isso, projetamos mais e mais no outro. Sofrido? Claro. Mas tem lá suas satisfações … afinal se o inimigo é de fora, é outro… “A culpa é dele e me isento de qualquer responsabilidade aqui, tá ok?”.
Esse inimigo fala de coisas insuportáveis, não dá nem de escutá-lo… melhor o deixar falando sozinho ou então nem aparecer pra discutir com ele. É o que nos ameaça e, portanto, o que mais desejamos eliminar.
Curiosamente, em nossa fantasia, o inimigo sempre responde do lugar que criamos para ele. E, assim também correspondemos: levantando muros, trincheiras, armas, intrigas, conspirações, atribuindo a esse inimigo, a razão de TODOS os males.
Dito isso, escutando Lady Gaga (não só na pandemia, mas sempre que possível) cabe a nós, tentar olhar por outros ângulos … feito Alice, do outro lado do espelho.
Não sabemos ainda o quão profundamente a personagem vilã será abordada no filme, nem suas nuances ou complexidades. Contudo, até aqui, Lady Gaga tem cantado que muito de nossos inimigos não estão tão longe assim de nós mesmos. E que se não for possível lidar com isso, que tenhamos coragem pra pedir ajuda. Uma luzinha para nossos próprios enigmas.
Porque poder criar, dançar, sorrir e conseguir ver o belo apesar da desgraça, apesar da escuridão, com e apesar de nós próprios, com e apesar dos outros, é a possibilidade que temos de viver uma vida. E viver é urgente, é efêmero… à luz do dia, na escuridão da noite. Na chuva, no cinema e nas pistas de nossas experiências.
Raquel Peyerl é psicóloga e psicanalista. Adora músicas, letras e composições da vida. (raquel.peyerl@gmail.com)
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