Sim, eu assisti – assim como mais de três milhões de brasileiros – ao filme “Ainda estou aqui”, e saí em silêncio do cinema, um silêncio que não hesitaria em chamar de “obsequioso”: aquele filme (que nos obriga a LEMBRAR e a AD-MIRAR – ver de fora – um tipo de sofrimento de natureza inefável: o suplício e o desaparecimento de uma pessoa amada!), me obrigou também a me CALAR. Perguntei-me, ao sair, o que eu diria a Eunice Paiva se por acaso a encontrasse? Aliás, a pergunta que eu faria poderia ser respondida em palavras humanas?
Eu já havia manifestado essa exigência de “silêncio” quando falei (em artigo no Jornal do Commercio de Recife) sobre a morte, aos 105 anos, de Dona Zita, mãe de Fernando Santa Cruz, até o fim procurando informações sobre o paradeiro do filho “desaparecido”! E cheguei a me perguntar, naquele artigo, se haveria um “Michelangelo” contemporâneo capaz de extrair do duro mármore a dor impronunciável de Dona Zita.
Assustou-me também – embora de forma positiva – a verdadeira “CATARSE” que a vitória de Fernanda Torres (absolutamente magnífica no papel de Eunice Paiva!) representou nesse momento e para nosso país, nas vésperas do segundo ano do ataque à democracia levada a cabo pelos bolsonaristas naquele fatídico 8 de janeiro: há uma exigência moral e política nos ares do Brasil – aquele que tem memória e pudor – de que não podemos apenas “lembrar”, mas precisamos, finalmente, punir! POENA QUAE SERA TAMEN (PUNIÇÃO, AINDA QUE TARDIA!): punir aqueles que produziram, há mais de quarenta anos, uma dor inefável, aquela que não proíbe apenas a voz, ela suprime a voz, o dono da voz, o conteúdo da voz, os meios de difusão da voz e, se possível, os ouvintes da voz, e ao fazê-lo, proíbe que tenhamos um passado e um futuro, uma lembrança e uma esperança… E para isso faz “DESAPARECER”: se a política é o lugar onde aparecemos uns aos outros, para nos fazermos vistos e ouvidos, ver e ouvir e construir um Mundo Comum, a ideia de “desaparecimento” não faz parte da política, mas do extermínio! Exatamente a mesma coisa que estava na cabeça do General “Brega Nato” quando planejou assassinatos de pessoas públicas. O silêncio que me impus na saída daquele cinema não é o mesmo silêncio sepulcral imposto pela eliminação física e moral do Outro.
O sentido de CATARSE a que me referi remete à “Poética” de Aristóteles (e sua análise da tragédia “Édipo-Rei” de Sófocles): depois de ter despertado a piedade e o terror, em função da agonística que marca o Destino Trágico do herói, com o qual nos identificamos (empatia), a sociedade precisa de “descanso”, de “reconciliação”: o herói, Édipo – parricida, sacrílego e incestuoso – será punido da pior forma que a sensibilidade política grega produziu: a morte em vida. Cego, ele não mais “reconhecerá”; expulso de Tebas, ele não será mais “reconhecido” (como cidadão). Uma estranha “morte”, porque consciente! No entanto, é necessário examinar com cuidado esse sentimento catártico provocado pelo filme, como se tivéssemos acertado as contas com os crimes de Estado, com os criminosos que nunca foram punidos, com um passado que teima em não passar, com os atuais traidores da ordem democrática.
O filme de Walter Salles traz um título que pode ser lido como um manifesto de resistência (a Arte vingou a morte, como disse Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro: um sentido moderno do ARS LONGA VITA BREVIS de Sêneca), mas pode também – Ai! Meu Deus! – ser lido por um bolsonaro, um braga neto, um general heleno (grafo propositalmente com minúsculas!), como a certeza de que ainda estão presentes em nossa sociedade, antes nas sombras, agora no parlamento e nas instituições republicanas, cada vez mais fraturadas e desagregadas, e que basta um rápido cochilo da vigilância democrática (o “Sono da Razão produz monstros”, dizia Lukàcs) para ele reaparecer.
Torço por uma punição exemplar desses criminosos, espero que nenhuma ARTE venha lembrá-los. Mas torço, antes de tudo, para que possamos realizar aquilo que os alemães tiveram tanta dificuldade em fazer: a “desnazificação” da Alemanha após a Guerra… Eles ainda estão aqui!
Todos os textos de Flávio Brayner estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais