Como não consegue explicar o absurdo da morte, o obituário faz com que a vida seja consagrada. Ainda que de maneira condensada e resumida, todo necrológio é uma exaltação, não necessariamente pelos elogios – às vezes exagerados -que carrega, mas pela capacidade de tentar buscar um sentido em tudo o que foi vivido. O New York Times levou este ensinamento ao ponto mais alto, fazendo da sua página de obituários um sinônimo do jornalismo de qualidade superior. Um exemplo disso está em “O Livro das Vidas”, antologia organizada por Matinas Suzuki Jr. que reúne obituários publicados pelo New York Times.
O livro surge da junção de duas outras coletâneas publicadas nos EUA. A primeira, de 1997, é “The Last Word: The New York Times Book of Obituaries and Farewells. A Celebration of Unusual Lives”, organizado por Marvin Siegel, editor de obituários do jornal naquele período. A outra, mais recente, é “52 McGs: The Best Obituaries from Legendary New York Times writer Robert McG. Thomas Jr.”, reunindo textos do mais destacado fazedor de obituários. O que “O Livro das Vidas” reúne são textos curtos, mas não superficiais, curiosos, mas não bobos, emotivos, mas sem escorregar para a pieguice, enfim, relatos escritos na medida certa, respeitando o rigor jornalístico, mas sem perder a ternura.
Como a seção está entre as mais lidas em muitos jornais e quase sempre trabalha com o imponderável – a pauta de Deus, como explica Matinas no posfácio, repetindo um conceito criado por Richard Pearson, do Washington Post -, cabe ao obituarista mesclar doses exatas de sensibilidade e objetividade. Síntese é a palavra-chave. A partir daí, os obituários do NYT seguem um padrão rígido, fazendo com que todos os necrológios comecem de maneira parecida, identificando o morto, dando sua idade e a causa da morte (confirmada por alguém próximo e que é citado como fonte). Tudo isso em, no máximo, dois parágrafos. Suicidas não entram, bem como eufemismos como “passou desta para melhor”, “nos deixou”. A morte é tratada com solenidade, mas também com objetividade e com o máximo de praticidade que a ocasião pode exigir. Por isso, o NYT – como tantos outros jornais do mundo – tem uma “gaveta” com possíveis obituários já engatilhados. Prática comum nas redações, a “gaveta” do NYT chama a atenção por outros dois motivos: a quantidade (hoje estima-se em mais de 2 mil necrológios semiprontos) e os detalhes, já que muitos obituários foram enriquecidos pelos depoimentos.
Os personagens apresentados em “O Livro das Vidas” não são facilmente reconhecíveis – e isso valoriza ainda mais a leitura. Bill McDonald, editor do NYT, ensina que os melhores obituários são aqueles que nos falam de pessoas sobre as quais nós nunca tínhamos ouvido falar e nos deixam chateados por não temos tido a chance de conhecê-las. Uma das regras do NYT é que o obituário de um cineasta saia na seção de cinema, de um compositor na de música, assim a página de necrológios contempla mortos que, no máximo, alcançaram uma microfama.
Figuras como o “Calvin Klein do espaço”, Russel Colley, “estilista frustrado de moda feminina que aproveitou sua carreira alternativa de engenheiro para se tornar o pai dos trajes espaciais”. Ou Elizabeth Bottomley Noyce, “a primeira esposa de um milionário dos microchips que a desprezava, e que após a separação usou metade da fortuna que ele fez no Vale do Silício com a mesma verve e disposição que o marido havia empregado para construí-la”. E até um dos anônimos mais famosos de todos os
tempos: Nguyen Ngoc Loan, comandante da polícia nacional do Vietnã do Sul, cuja execução improvisada de um prisioneiro vietcongue numa rua de Saigon, durante a ofensiva do Tet, em 1º de fevereiro de 1968, ajudou a inflamar a opinião pública americana contra a guerra. Ngoc Loan morreu em julho de 1998, aos 67 anos, e era dono de uma pizzaria em Virginia, nos EUA. “O Livro das Vidas” é também um painel da vida americana do século 20. Estão lá detalhes sobre o crescimento urbano, a II Guerra Mundial, a literatura beat, o surgimento dos computadores, a Aids, e as já citadas corrida espacial e guerra do Vietnã.
Alden Whitman, o “pai do obituário moderno na imprensa americana”, editor que revolucionou a seção de obituários do NYT quando para lá foi em 1964, dizia que “um bom obituário não é uma biografia”. Para ele o necrológio era “um instantâneo do sujeito”. Uma polaróide de uma vida.