Se a gourmetização parasse no Xis, já seria uma tragédia para a civilização, mas ela avançou sobre a moral e a ética para criar o Politicamente Correto e o Cancelamento. O 1º tornou-se instrumento de manipulação com suas verdades rasteiras e o 2º, o exterminador de quem se opuser ao 1º.
Enquanto a mamãe bate a sopa no liquidificador para o bebê desdentado, o Politicamente Correto tritura a ética socrática, universalidade, imperativo categórico, para o adulto preguiçoso ter um modo de vida virtuoso.
Ética é perplexidade, sensação de ignorância, perdimento, enquanto o Politicamente Correto (PC), onde um pinto passa com água nos calcanhares, é uma cornucópia de certezas, vaidades e epifanias.
O PC é o atalho dos livros chatos, das questões complexas, do entendimento holístico. É abrigo, pertencimento, lugar de encontro, segurança. Compartilhando as ideias padrões validadas, você traça a fronteira entre as pessoas de bem e os mal-intencionados, os justos e os celerados…
Na Torre de Babel do Politicamente Correto, há todo o tipo de línguas, mas isso não compromete a compreensão, já que todos no fim falam a mesma coisa, tudo se resume a exaltar e perolar as certezas compartilhadas, engraxar e lustrar o sapato do pobre pra ver sua imagem bem-intencionada.
Daí desdobram o LGBTQIAP+ em tantos gêneros que, se fosse exigido um banheiro para cada um, ia faltar lugar pro campo nos estádios de futebol, enquanto a essencialidade da proteção dessas minorias de obter respeito, incolumidade física, felicidade e trabalho acabam na fila. O debate sobre o barbudo de saia frequentar banheiros de meninas é o carvão da locomotiva da extrema direita que impulsiona preconceito, violência e discriminação. O fato isolado, talvez um problema mental, deixa de ser a árvore e se torna a floresta, dá-se relevância ao irrelevante e, de uma hora pra outra, isso conduz o debate do Politicamente Correto.
“-Temos que conservar a natureza, afinal nossa vida depende dela, então devemos manter a floresta em pé,” diz a consciente oradora sobre aquele tablado de madeira. Debater exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, já descamba pra exploração comercial do nosso patrimônio ecológico, submetendo-se ao grande capital. Claro, só escapa aos bem-intencionados os milhares de royalties e empregos que a atividade econômica geraria e, aliado a isso, a pouca disposição pro trabalho também não incentiva um debate sério para exploração sustentável, que demandaria estudos, análises e aprofundamento.
Todos se julgam pais e mães do PC, pois ele representa o pensamento superior, a compreensão bem-acabada, uma ética revisitada a nortear a moral do homem pós-moderno.
Nessa consciência paternal, poucos se dão conta que receberam a pauta pronta, que estão sendo manipulados, que, se fizerem o DNA, certamente não serão os pais da criança.
O Politicamente Correto é o golpe perfeito! É como se você ligasse para o estelionatário para passar seus dados bancários; pegasse o sequestrador em casa para sacar dinheiro em caixas 24 horas; chamasse o presidiário para pagar o resgate da filha que você não tem. Botaram na sua cabeça que a ideia é sua. Mais do que isso: a ideia é boa e indiscutível!
E por aí um é abonado quando manda Pelotas exportar viados e/ou diz que mulher valorosa tem o grelo duro, enquanto o outro é empalado vivo ao explicar a filha por uma fraquejada e/ou fazer piada com dar o “furo”. Ao mesmo tempo em que defensores da democracia praguejam contra os USA, se recusam a admoestar Cuba, Nicarágua e Venezuela. Por aqui, incansáveis defensores dos trabalhadores esfolam pequenos empresários esticando direitos trabalhistas, enquanto pra China sobram explicações para seu modo peculiar de tratar os operários…
Aqui entra o pertencimento à confraria dos justos, pois, entre iguais, o deslize é apenas como um deslize, enquanto, para os diferentes, é a confirmação do lamentável caráter e péssimas intenções.
No Ministério da Verdade do Politicamente Correto, crianças vietnamitas trabalham 14 horas/dia, 7 dias por semana, construindo as verdades perfeitas sobre as relações trabalhistas, etarismo, bullying, gênero, democracia, direitos humanos… Fornalhas de carvão vegetal geram a energia para produzir o material sobre meio-ambiente, enquanto inspetores dão choques nos operários preguiçosos do setor de assédio no trabalho.
Na área de visitantes, bem longe da produção das ideias bem-intencionadas, monges palestram sobre o amor ao próximo em um auditório de garrafas pets recicladas, construído por angolanos atingidos por minas terrestres.
No começo o PC era usado em frase de miss: “-Quero agradecer a Deus, minha mãe, meu pai, toda a equipe que me trouxe até aqui, e dizer que a humildade é a verdadeira beleza, e que essa taça de champagne não me faz esquecer aqueles, aquelas e aquelx que, neste momento, estão morando embaixo de um viaduto”. Um missólogo deve ter importado o modelo pro mainstream da intelectualidade atual.
Daí repetir duas ou três platitudes sobre meio ambiente, direitos humanos e etarismo pra ouvir o mundo dizer: “-Eu te absolvo, não precisa fazer mais nada, posa virtuoso no Insta e toma a faixa de miss lacradorx!”.
Na metafísica do Politicamente Correto, as obviedades são o passaporte pro paraíso independente das suas ações e – principalmente-, das suas omissões. Dá ainda o direito a uma pulseira “fura-fila” e – quando você descer do veleiro de ouro do Caronte puxado por cisnes brancos albinos -, Cristo, Buda, Ogum e Maomé estarão esperando você com uma Veuve Clicquot. Dândis lançarão pétalas das suas torres de marfim pra comemorar sua chegada, enquanto Martin Luther King, na fila comum, espera para entrar no céu (-quem mandou não lacrar!).
Às vezes as consciências não cabem no apertado mundo das verdades perfeitas, mas basta podar daqui, deixar de pensar dali, que, em pouco tempo, você terá encolhido o suficiente para dançar em cima daquele rádio de válvulas, segurando uma tampa de pasta de dente com champagne, saltando como uma perereca quando o troço começar a esquentar (adorável imagem do saudoso Charles Bukowski).
-Não quer encolher? Nem beber em tampa de pasta de dente? Nem queimar o pesinho no rádio de válvula?
Hahahahahaha.
Então vai conversar com o Cancelamento, Alecrim Dourado”…
Rambo era boina verde, o Cancelamento boina preta. Acima do boina verde, o boina preta. Acima do boina preta, Deus, quem sabe…
O Cancelamento está para o Politicamente Correto, como os Jesuítas estão para a igreja católica; o jagunço, pro patrão latifundiário.
É que nada que mereça referência habita para além das bordas da terra plana do Politicamente Correto; só há bárbaros além dos limites desse império romano. Aos bárbaros a misericórdia da conversão ou a espada implacável do Cancelamento.
A conversão é simples: desenvolva uma ideia óbvia, tipo confessionário de BBB em paredão, daqueles que arrancam palmas de auditórios, sem se arriscar em pensamentos complexos, ou interpretações próprias, coloca uma #MeSentindoAbencoado e posta no Instagram. Pronto, agora vocx é benvindx!
Foto da Capa: Ekaterina Belinskaya/Pexels