Carl Sagan costumava dizer que “Pollyanna era mais feliz do que Cassandra”. Sagan usava esta frase para diversas situações. Hoje, essas personagens, criadas em épocas muito distintas, ilustram com exatidão nossas atitudes em meio a um planeta que caminha rapidamente para uma extensa deterioração.
Pollyanna é a personagem principal do livro de mesmo nome, escrito por Eleanor H. Porter. Ela é uma menina órfã de 11 anos que, após a morte do pai, vai morar com sua tia Miss Porter. Lá começa a ensinar a todos “o jogo do contente”, que havia aprendido com o pai. O “jogo” consiste em sempre ver o lado bom das coisas. Um exemplo típico é demonstrado quando Pollyanna, em vez da boneca que queria ganhar de Natal, ganha um par de muletas. Ao invés de ficar triste, Pollyana fica feliz, pois não precisa usar muletas!
Essa visão “rósea” do mundo é abalada quando Pollyanna é atropelada e não consegue mais andar. Ela confessa então que assim, paralisada, não conseguia mais jogar o jogo do contente. Com o tempo, as coisas melhoram e, com ajuda de um bondoso médico, Pollyanna se recupera. Ainda assim, a personagem ficou para sempre como o símbolo dos inocentes felizes, que não conseguem enxergar o lado ruim do mundo.
Cassandra é uma personagem na mitologia grega que recebe de Apolo o dom da profecia em troca do seu amor. Ela recebe o dom, mas se recusa a amá-lo. Apolo então lhe retira o dom do convencimento. Usando o dom da profecia, Cassandra antecipa grandes tragédias que virão. Mas ninguém acredita nela. E a tratam como louca. A profecia mais conhecida é quando Cassandra alerta aos habitantes de Troia (ela era filha de Príamo, rei de Troia) o que vai acontecer se levarem o cavalo presenteado pelos gregos para dentro dos muros da cidade. Não lhe deram atenção.
Hades, na mitologia grega, é o deus do submundo, o mundo dos mortos. Muitas vezes o nome é usado para designar tanto o deus quanto o seu reino, que se encontra nas trevas, abaixo do solo. O deus Hades tinha como missão não deixar que os mortos retornassem ao mundo dos vivos, e para isso contava com ajuda de Cérbero, o cão com três cabeças. A ida para o reino de Hades era um caminho sem volta.
Pois no atual cenário de degradação global, todos nós somos Pollyannas ou Cassandras ou, mais comumente, uma combinação das duas, andando de mãos dadas a caminho de Hades. Num certo momento, cruzaremos o ponto de não-retorno, quando o que fizemos não poderá mais ser consertado. Um planeta quente, poluído e quase sem vida será o nosso Hades.
Há muitas Cassandras nos avisando do que está por vir. Cientistas de diversas áreas, ativistas, jornalistas, escritores, todos convencidos de que algo muito grave está acontecendo no planeta. Na verdade, como eu disse acima, dentro de todos nós há uma Cassandra que pressente as tragédias que poderão acontecer. Seja porque, racionalmente, sabemos que as evidências são abundantes, seja porque algumas delas já estão ocorrendo à nossa volta, afetando nossas vidas ou de pessoas próximas.
No entanto, na maioria das pessoas, a porção Pollyanna predomina. Neste caso, trata-se de uma persona mais complexa que a Pollyanna original, ainda que tenham em comum um otimismo quase tolo, que ignora as ameaças que estão cada vez mais claras. Por que agimos assim? A resposta é difícil, e tem muitas nuances. Do ponto de vista do indivíduo, me parece haver uma conjunção de pelo menos três fatores: negacionismo, complacência e vício nos confortos da vida moderna. Vou explorar esses temas com maior profundidade ao longo do ano. Mas antecipo um resumo do que eu penso a seguir.
Há quem seja negacionista radical. Para estes, o aquecimento global é um embuste. Segundo eles, a Terra sempre passou por períodos mais quentes e mais frios, e isso faz parte dos ciclos naturais, sendo o atual aquecimento apenas mais um. Como vou demonstrar em colunas futuras, esse raciocínio, que está correto quanto aos ciclos anteriores, esconde uma falácia: a premissa de que o atual ciclo de aquecimento seja comparável aos do passado.
No entanto, é mais comum praticarmos um negacionismo mais sutil. Ouvimos os argumentos dos cientistas e demais pessoas que nos alertam sobre as ameaças à estabilidade do planeta, mas no fundo pensamos que não deve ser tão ruim assim. Afinal, todos os dias alguém enxerga um apocalipse chegando. Tem sido assim desde o começo da humanidade. Será que este não é apenas mais um alarme falso?
A complacência é definida como “o desejo de agradar os outros”. Basicamente, se refere à nossa necessidade de “pertencer ao grupo”, um instinto semelhante ao de muitos outros animais. De modo geral, a não ser que outro instinto (como o sexual e o territorial) não atuar de maneira mais forte, tentando sermos bons, solidários, e assim sermos bem-quistos pelo grupo a que pertencemos.
Na área de segurança o termo complacência é utilizado de forma um pouco diferente. Tomando mais o sentido de “acomodação”. É a atitude que faz com que “esqueçamos” de recarregar os extintores do prédio (custa caro!) porque, afinal, “nunca tivemos aqui nem um princípio de incêndio”!
O excesso de autoconfiança de quem já praticou muitas vezes um esporte ou trabalho perigoso sem jamais ter sofrido um acidente, é outra forma de complacência, pois quando as pessoas chegam nesse ponto os acidentes se tornam muito mais prováveis.
No caso da nossa complacência diante da crise planetária há pelo menos dois aspectos a considerar. Primeiramente, não queremos ser vistos como os alarmistas da turma, aqueles chatos que levam tudo muito a sério. Afinal, é muito melhor falar sobre a última série de streaming do que sobre assuntos desagradáveis. A tal série pode até ser sobre o fim do mundo, mas o que interessa mesmo é o drama, o destino dos personagens, que geralmente se salvam heroicamente.
Depois, há um tipo de complacência que se confunde com o negacionismo. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: já passamos por coisas assim antes – já tivemos ondas de calor, secas, tempestades, inundações, tudo isso, e continuamos vivendo como sempre vivemos.
Embora saibamos que a situação agora é diferente das anteriores, que os humanos jamais interferiram no planeta da forma como estão fazendo, há uma parte de nós que insiste na esperança de que tudo seja um exagero, um evento que, como os outros, vai se mostrar passageiro. Examine bem os recantos da sua mente. Você vai encontrar em algum lugar o fantasma da complacência.
E ainda existe o vício, aquele mal em que a pessoa, mesmo sabendo que um determinado hábito ou comportamento lhe faz mal, não consegue deixá-lo. Os vários aspectos viciantes da vida moderna merecem uma discussão mais profunda, e eu voltarei a esse assunto futuramente. Por ora fiquemos com uma constatação óbvia: nós temos muita dificuldade em mudar nosso estilo de vida. Estão aí os terapeutas, nutricionistas, e coachs de todos os tipos ganhando muito dinheiro porque as pessoas querem, mas, simplesmente, não conseguem mudar.
A inação de todos nós diante da destruição planetária me deixa muito preocupado. Como mudar isso? Penso que a primeira coisa que devemos fazer é conhecer os problemas com maior profundidade. Uma vez conhecendo-os, poderemos definir nossa estratégia pessoal, em função daqueles que representam as maiores ameaças para nós e para as pessoas e lugares que amamos, e da nossa capacidade de influenciar a busca e a adoção de soluções pela sociedade. Se todos fizerem isso, nossos esforços conjuntos poderão salvar o planeta, e a nós mesmos.
Uma forma que encontrei para pessoalmente me juntar ao esforço de mudar corações e mentes, para juntos encontrarmos as formas de tornar nossa civilização mais sustentável, é descrever, da maneira mais completa possível, quais são as principais transformações que os humanos estão impondo ao planeta, e porque elas representam uma ameaça à nossa existência. Utilizando uma abordagem que seja acessível para todos os públicos. Fiz isso no Planeta Hostil, meu livro que será publicado em breve, e farei aqui, com um enfoque um pouco diferente, nas colunas da Sler.
Descrever os muitos problemas que estão ocorrendo vai exigir uma longa série de textos e vídeos, talvez ocupando todo o ano de 2024. Nesse contexto, vou intercalar as colunas sobre temas específicos com colunas mais, digamos assim, filosóficas, como uma discussão mais aprofundada sobre o negacionismo. Ou textos sobre determinados conceitos científicos que são essenciais para entendermos como o planeta funciona. A definição de sistemas dinâmicos, por exemplo. E ainda assuntos do momento, como uma avaliação dos resultados da COP 28.
Semana que vem começarei a falar sobre o degelo e a subida do nível do mar, e de como esse fenômeno, além de destruir sua praia favorita, pode ameaçar a atividade econômica e até a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo.
Conto com sua companhia nessa desafiadora jornada de 2024!
Observação final: Não esqueça de ver o vídeo que publicarei na próxima quinta-feira na minha conta do Instagram @marcomoraesciencia.
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