Quem vai ao centro de Porto Alegre pelo túnel, como eu, não tem como não ficar horrorizado com o que vê entre a Rodoviária e o Mercado Público. Da janela do ônibus da Carris, percorrendo a Av. Mauá, vejo nesse trecho algo que lembra uma cena desses filmes distópicos: uma cerca de concreto de um lado e uma cidade destruída, abandonada, do outro. Pior ainda com as marcas do barro da enchente.
Não sei se é vício de arquiteto, mas quando vejo coisas assim, imediatamente começo a fazer planos, pensar em soluções para alterar o quadro deprimente. Afinal, o lugar é privilegiado por natureza… e desgraçado por obra humana. Com a licença de vocês, o que não passaria de um exercício mental, vou botar em letras.
Já sofri o que dava com a entrega de toda a borda do Centro Histórico para a iniciativa privada decidir o que fazer do outro lado do Muro. Depois de tantos concursos de projetos elaborados pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, não aceito que o governo não tenha manifestado e defendido o interesse público na área do cais do porto. Entregaram-na tipo “porteira fechada”, como se diz. Façam o que acharem melhor para que o retorno do capital investido seja garantido pra vocês. Acreditamos que o que é bom para o capital é bom para a cidade. Algo assim deve ter passado na cabeça dos técnicos do BNDES que organizaram o edital da concessão. Fizeram isso lá no Rio de Janeiro, contratando um escritório paulista para traduzir dinheiro em metro quadrado de construção. Acho que nem isso foi bem feito, pois depois de duas tentativas, só apareceu um interessado no leilão ocorrido… onde? Na bolsa de valores de São Paulo.
Não adianta mais chorar o leite derramado, eu sei, mas não tenho como evitar imaginar um outro cenário, uma cidade para seus habitantes e não para o capital. Não vou trazer aqui um plano global para o porto. Hoje, sou contra essa ideia totalizante. O ideal, na minha opinião, teria sido o governador, num gesto de elegância, repassar a gleba que ganhou do governo federal para a prefeitura, quer dizer, para a cidade. Teríamos assim, de volta, como foi até os anos 1970, uma avenida com uma série de lotes, alguns construídos, outros não. O uso de cada um seria definido pelo planejamento municipal de acordo com o interesse da cidadania.
Vou me ater a um único lote, que, pelo uso que imagino, teria repercussão geral para o cais e o Centro Histórico. Falo do lote alinhado ao Pop Center, hoje ocupado por um grande armazém destelhado, sem valor arquitetônico ou histórico. Vejo ali uma oportunidade de uma revolução no sistema de transporte da cidade. Revolução porque a evolução não aconteceu e gerou a necessidade de ações radicais para recuperar o tempo perdido, o que não vai acontecer (aliás, se tem coisa que não se recupera, é o tempo).
A ideia é tão simples e óbvia que não duvido que já não tenha sido pensada. Falo em estender o Pop Center por cima da Mauá e de seu muro para chegar à beira do Cais. A minha inspiração vem da Rodoviária de Vitória, no Espírito Santo, projeto de Carlos Maximiliano Fayet, famoso (já ouviu falar?) arquiteto de Porto Alegre, com quem tive a oportunidade de estagiar, desenhando, dentre muitos dos seus excelentes projetos, essa rodoviária.
Quem acessou o link viu que ela também é o grande terminal hidroviário da cidade. Entenderam onde quero chegar? Penso na rara oportunidade que teríamos de integrar num mesmo ponto linhas de ônibus e linhas de catamarã para diversos bairros e cidades vizinhas. Poderiam ser estudadas, facilmente, dada a proximidade, ligações de transbordo para o Trensurb e Rodoviária. O trecho do metrô entre a Rodoviária e o Mercado Público poderia ser substituído por uma boa rede de VLT, atingindo todos os quadrantes do Centro Histórico. Não tenho lugar aqui para dizer das incríveis possibilidades urbanísticas que se abririam com esse gesto. Porto Alegre se igualaria em termos de transporte público às cidades do mesmo porte mundo afora.
Só que nada disso vai acontecer. Não posso deixar de lembrar que é de envergonhar o abandono que o planejamento do transporte de massas passa aqui. Uma cidade que desenhou linhas de metrô, inventou o aeromóvel, planejou BRT’s e VLT’s desistiu de tudo isso em favor do veículo particular e compartilhado (Uber). Ah, mas implantamos alguns quilômetros de ciclovias e agora temos patinetes… (contém ironia).
A extensão do POP Center também seria importante para integrar os dois lados do muro, quebrando o propósito de construção de mais uma ilha de privilegiados alimentada por automóveis. O Embarcadero é uma pequena amostra do que se pretende para o porto. Você já tentou chegar lá a pé? Eu já. Contei minha experiência em Cidades feita de Ilhas.
O ônibus montado sobre a plataforma de caminhão dá um tranco – onde foram parar os veículos adequados ao transporte de passageiros da Carris? – e estaciona no Mercado Público. Acordo sobressaltado do devaneio, olho a sujeira do terminal, volto para a Porto Alegre real, que vai de mal a pior.
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Foto da Capa: Google Street View