O resultado do Censo tira do armário uma pergunta que prefeitos e vereadores têm evitado fazer ao aprovarem leis de interesse da indústria imobiliária: se grandes e importantes cidades brasileiras perderam população, quem vai ocupar os cada vez maiores edifícios que estão sendo aprovados nessas mesmas cidades? Esse fenômeno está acontecendo em Salvador, Natal, Belém, Porto Alegre e tantas outras.
Já se sabe faz tempo – mas nem todo mundo, pelo visto – que a população brasileira tende para uma estabilização e logo declínio, a partir de 2050. Agora, o Censo mostrou que está havendo uma aceleração desse processo. A população do Brasil cresceu menos que o esperado. Muitas cidades, que já se imaginavam em estabilidade em relação ao seu número de habitantes, perderam população.
É certo que não faltam argumentos para negacionistas atacarem o Censo: “nunca vi construírem tanto na minha cidade”. E é verdade, basta andar pela rua para perceber isso. Mas atenção, não é em qualquer rua ou em qualquer bairro, são em determinadas regiões.
Os planos diretores ao distribuírem índices construtivos iguais, ou quase, por todo o território das cidades permitem que o mercado imobiliário eleja os lugares onde vai focar sua atenção. Não é uma orquestração deliberada, mas basta um lugar se destacar por suas boas qualidades para que a primeira construtora chegue abrindo espaço para seu grande empreendimento. As demais logo a seguem para dar início à erradicação do que tinha servido de chamariz para a publicidade de venda.
Não é preciso dizer que os valores que dão origem a esse processo vão se depreciar logo em seguida. Todo cidadão brasileiro sabe dizer onde estão os bairros que foram — sim, foram —, muito valorizados no passado e agora estão desvalorizados ou até semiabandonados.
E o que acontece com os demais bairros que formam a maior parte das zonas urbanas? Em primeiro lugar se tornam invisíveis. Como não há surto imobiliário e, muito menos, investimentos públicos ou privados, deixamos de prestar atenção neles. São as zonas “mortas”. Formam a maior parte do tecido urbano de nossas cidades. Em Porto Alegre, para citar alguns exemplos, temos bairros como Azenha, Glória, Teresópolis, Jardim Itu e muitos e muitos outros. Em São Paulo temos principalmente a infinita zona leste e assim por diante.
Em segundo lugar, começa a haver um esvaziamento populacional de alguns desses bairros. São as chamadas migrações internas. Quem pode morar melhor é atraído pelos bairros que são divulgados pela publicidade e pela mídia como “em ebulição”, com mais moradias e atrações condizentes com a vida contemporânea.
A consequência disso é que uma grande quantidade de bairros entram num círculo vicioso de decadência. Os imóveis se desvalorizam, terrenos vazios nunca são preenchidos por novas construções.
Um outro fator que explica a dinâmica do mercado imobiliário em bairros escolhidos, é que o imóvel, para os ricos, é uma forma muito segura de guardar capital. Mesmo vazio, sem uso e, portanto, sem gerar renda, ele acompanha ou supera os índices de inflação (é a chamada apropriação privada do investimento social que acontece nos lugares onde há investimentos de capital público —em infraestrutura — e privado — em serviços ). Compensa pela absoluta segurança garantida por escrituras registradas em cartório. É como ouro ou moedas estrangeiras, mas mais seguro. Uma sabedoria clássica para quem tem muito dinheiro é não botar todos os ovos na mesma cesta. Os imóveis sempre receberão sua parte, não importa se necessários ou não para habitação ou negócios. Isso explica a enorme quantidade de imóveis vazios também revelada pelo Censo. Qualquer cidade tem mais imóveis vazios do que moradores de rua ou necessitados de melhores acomodações.
Antigamente, a compra de terrenos cumpria bem esse papel de cofre de capital, mas hoje o imposto progressivo fez essa prática perder atração. Essa lei foi um grande avanço civilizatório do planejamento urbano.
E ainda tem o fator lavagem de dinheiro. A internet diz que o Brasil é campeão mundial nessa categoria e que a cifra anual é de bilhões de reais. A dinheirama que circula anonimamente precisa encontrar formas de entrar no circuito legal. Os donos desse dinheiro, afinal, querem usá-lo de forma lícita também.
É possível mudar esse quadro? Acabar com a especulação imobiliária? Esperar que a racionalidade e a solidariedade resolvam o problema da habitação dos que não a tem? Sou cético. Mas acredito que vale lutar para a conscientização da sociedade para exigir que nossas autoridades mudem os conceitos dos nossos planos diretores no sentido de reduzir drasticamente os índices de aproveitamento dos terrenos (o que dá o tamanho dos edifícios e, por consequência, o valor dos terrenos). O índice consagrado para isso é uma vez a área do terreno, índice 1. Em um terreno de 500m², por exemplo, seria permitido construir 500m², logo não vale a pena substituir o que houver ali. A partir daí, a prefeitura passaria a autorizar índices maiores por interesse de um planejamento macro feito por especialistas em planejamento urbano e não pela indústria imobiliária. Com isso, desapareceria como mágica a pressão pelas demolições em bairros consolidados, abrindo espaço cada vez maior para a rearquitetura, o que faz muito mais sentido em cidades onde não há aumento populacional.
Foto da Capa: Eduardo Aigner