Volto esta semana ao tema do amor. De certa forma ele nunca sai do meu campo de vivências e análises e em cada debruçar me descubro e procuro novos ângulos. Evitei na semana das grandes separações midiáticas, Ana Maria Braga tocar no tema da carta de Luiza Sonza porque me parecia apenas surfar em algo que é alvo para mim de investigações existenciais.
Porém nesta semana encontrei Annie Ernaux, escritora e professora francesa, Prêmio Nobel de 2022 pelo conjunto de sua obra, que foi descrita por sua “coragem e acuidade clínica” para descortinar as raízes, os estranhamentos, os constrangimentos coletivos da memória pessoal. E por refletir sobre uma “vida marcada por grandes disparidades de gênero, linguagem e classe.”
Desde que comecei a escrever sobre minha história amorosa recebo muitas dicas de livros da modinha…, mas nunca me indicaram Madame Annie. E tive que descobri-la sozinha e simplesmente me encantei. Me identifiquei e já fiz dela uma referência de escrita ao ler Paixão Simples. Neste livro, Madame Annie traça uma verdadeira anatomia da alma apaixonada e também reflete sobre o poder da escrita e, ao mesmo tempo, faz um elogio ao luxo de viver um grande amor. Mais eu, impossível. Estou processo visceral de uma escrita autoral que revela minha alma e, simultaneamente, nesta fase da vida bancando corajosamente o luxo de viver grandes amores sem a idealização do para sempre, de relações com futuros ou possibilidade de casamentos.
Acredito que quanto mais a gente se abre para o mundo, mais vai mergulhando nas almas, passa para além do verniz do social, e descobre que no final todo mundo é regido pelo desejo. Segundo Lacan: “o desejo é o desejo do desejo.” E com ele vem a agonia, o transbordamento, o medo, a necessidade de controle e autocontrole, o estupor, o gozo e finalmente a suspensão do julgamento moral.
Neste livro, Madame Annie nos revela seu caso de amor, como amante de um homem cubano casado, na universidade onde ambos trabalhavam em Paris: “Com frequência tinha a sensação de viver essa paixão como se escrevesse um livro: a mesma necessidade de executar à perfeição a cada cena, o mesmo cuidado com os detalhes. Eu até pensava que não me importaria em morrer depois de ter ido ao limite da minha paixão – sem poder precisar o significava o limite – da mesma forma que poderia morrer depois que tivesse terminado de escrever isto aqui em alguns meses.”
Quando terminei de ler o livro vibrando em cada palavra, dando uaus… remetendo a situação que estou vivendo de me dar o luxo de conferir estas sensações novamente na minha próxima ida a Paris, e minha intensidade de gozo a cada texto que escrevo me veio a ideia de que estou vivendo uma paixão sem limites. Uma paixão com a essência de amante tanto com a escrita quanto com a minha escolha amorosa no momento. Bem longe das tramas cotidianas de Chico e Luiza, ou do insosso casamento de Sandy e Lucas Lima. E que coragem e atrevimento o meu. Graças as deusas. E a minha história de vida fora do padrão.
“Tédio
Tá tudo tão médio
Eu levando á sério
Não tem mais remédio para nós dois.” (Tédio, Iza, 2023)
Quem tem a alma de amante não consegue olhar para o tédio escancarado tanto nas relações quanto na vida. Nesta mesma semana em que descubro Madame Annie e sua escrita potente acolho conversas de um grande amigo me abrindo sua relação em casamento, no qual o tédio, a ruptura de diálogo e a acomodação estão instalados. Outra amiga me conta de um pedido de casamento como o ato de desespero do seu namorado para retê-la na relação como uma posse, onde ela também está em tédio. E assim escuto muitas histórias e só fico pensando na poesia musical de Iza: “Está tudo tão médio. Tudo tão cinza e sem cor. Todos a dois em solidão profundas e vivendo desamor”. Porém, em uma sociedade cheia de regras e padrões, a liberdade é ainda mais apavorante, e a coragem de ser livre apavora quem se agarra ao tédio como uma noção de estabilidade e rotina. Viver seus desejos apavora e, por isto, estes desejos são escondidos e viram vidas duplas, casos tórridos, amores proibidos, combinações de amizade e sexo sempre com a ilusão de controle.
Rana tem me ligado mais a cada dia que se aproxima meu retorno. Parece um monitoramento dos meus passos. Uma confirmação de quem sou. Às vezes atendo e dou atenção, outras vezes apenas digo que estou vivendo minha vida. Porque, sim, tenho a necessidade de criar um espaço de distanciamento numa relação que está pautada por Eros. Pela primeira vez não me sinto anulada com a falta da razão. Tenho o prazer do jogo. Apesar das pessoas a minha volta se sentirem muito incomodadas buscando argumentos racionais e insistirem na ideia de que está relação tenha um futuro. Eu já a decretei sem futuro, e isto a torna ainda mais excitante. Minha conclusão: a ilusão do controle e do previsível é uma obsessão das pessoas normativas.
Tédio…Tá tudo tão médio…
“Para te mostrar onde está o desejo, basta proibi-lo um pouco (se é verdade que existe desejo sem proibição). X quer que eu esteja do seu lado contanto que eu o deixe um pouco livre: maleável; me ausentando às vezes, mas não ficando tão longe…” Segundo Roland Barthes, esta seria a estrutura do casal “bem-sucedido”, um pouco de proibição, muito jogo; designar desejo, e depois deixá-lo, como estes nativos amáveis que mostram bem o caminho a você, sem no entanto se oferecerem para acompanhá-lo.
Um delicioso Luxo que poucos ousam viver. Finalmente, descobri porque o arquétipo do amante cabe mais na minha psiquê e na minha vida, e meu desprezo pelo arquétipo do casamento: dedicar se a arte de viver a luxúria no presente em busca do prazer. Amanhã? Amanhã não existe. E a gente trata disto depois.
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*Texto originalmente publicado aqui em 02/10/23, sob o título “Por mais amantes no mundo e menos casamentos”