Meu título parafraseia a seção “Por outra aldeia global” do capítulo A mediação digital de tudo: na intersecção da política, da tecnologia e das finanças”, elaborado por Evgeny Morozov para o simpósio “Empoderar a democracia através da cultura – ferramentas digitais para cidadãos culturalmente competentes” realizado na cidade alemã de Karlsruhe, em outubro de 2017 e integrante de sua obra Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política (Ubu, 2018).
Morozov é um notável crítico da tecnologia e do Vale do Silício. Gosto dele porque critica máximas como “empreendedorismo”, “inovação”, “economia do compartilhamento”, “Big data”, “inteligência artificial” que entende terem se tornado panaceia para a solução dos problemas históricos da humanidade. Em realidade, Morozov propõe entender a sua dimensão cultural, dissecando a tecnologia como forma de “dourar a pílula” de um novo modo de poder e de exploração do capital. Para ele, usar a tecnologia de maneira acertada é muito mais difícil do que sucumbir ao uso irrestrito das redes sociais, que nada mais faz do que nos derrotar frente ao capital, empobrecer o uso da técnica a serviço da comunicação e, pior, ser usada para manipular a democracia com o objetivo de empobrecê-la.
Eu já gostava de Morozov por seu A cidade inteligente: tecnologias urbanas e democracia (Ubu, 2019) por ser uma notável crítica ao conceito smart city no momento em que a ideia decolava no berço da direita. Para ele, a smart city é uma grife de um modo neoliberal de lidar com as cidades que as colocavam ao serviço das empresas big tech, quer dizer, era mais um modo de controle das cidades do que um facilitador da vida dos cidadãos de forma participativa e justa. Em ambas as obras, Morozov previa que a virada neoliberal em direção à defesa da tecnologia promovida pelas grandes corporações e plataformas digitais um dia iria cobrar seu preço.
O juízo final das redes
Esse dia chegou. Desde que o CEO da Meta, Mark Zuckerberg anunciou em vídeo publicado em seu Instagram suas cinco medidas para afrouxar as políticas de moderação de conteúdo de suas plataformas, vemos mais uma vez o discurso da liberdade de pensamento ser utilizado para o seu contrário, a disseminação de fake news. Se o objetivo de Zuckerberg é evitar os danos digitais no universo virtual provocados pelo processo de checagem, o efeito é justamente o contrário: a disseminação de erros no mundo real a partir da disseminação em escala de fake news agora pode ser alimentada por Inteligência Artificial. O exemplo não tardou a vir com a necessidade do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de vir a público para desmentir suposta entrevista, que nada mais era do que produto de IA, onde defendia novos impostos, principalmente sobre o Pix.
O mundo veio abaixo com as medidas anunciadas por Zuckerberg. A primeira delas, a substituição das agências de checagem por “notas de comunidade”, substitui organizações profissionais pelos próprios usuários, o que, definitivamente, é estabelecer aos cidadãos tomados pela emoção extremista de direita o poder de julgar e retirar do ar as postagens de esquerda com as quais não concordem. Entendo que as notas de comunidade abrem espaço para a luta política explicita nas redes; cada verdade de uma postagem poderá ser, entendo, respondida com uma fake news. Os grupos de direita e extrema direita na rede social têm alta capilaridade, capacidade de se organizar em rebanho para ocupar as notas de comunidade. As postagens de esquerda receberão notas de comunidade de direita, banindo-as das redes. Como se fará debate democrático nas redes sociais com esse nível de permissividade?
A segunda medida é simplificar as políticas de conteúdo. Novamente, a liberdade de pensamento é transformada em refém do pensamento de direita. Zuckerberg criou sua novilíngua à semelhança da de George Orwell. Como o escritor, o dono da Meta age não pela criação de novas palavras, mas pela alteração de seu significado com o objetivo de reduzir nossa capacidade crítica de pensamento. Orwell agia por remoção: se uma palavra não existisse, a coisa referida também não. No universo de Zuckerberg, basta alterar o significado das palavras: agora troque preconceitos por crenças e tudo está liberado. Quer que temas considerados tabus sejam discutidos sob o argumento de que foram “silenciadas opiniões e pessoas com ideias diferentes”. Ora, com um “Isso foi longe demais”, quer reivindicar como paladino da justiça, mas não faz mais do que permitir a injúria e a infâmia criminosa como forma de comunicação.
A terceira, que envolve a mudança na abordagem de execução, que retiraria conteúdos que não deveriam, em sua opinião, provocar um mal maior, pois se antes havia escaneamento de violações quaisquer, agora com a redução dos filtros, amplia-se o horizonte dos conteúdos publicados, sem questionar a possibilidade de que possam ser ilegais. Essa prerrogativa não estaria completa sem a seguinte, a quarta, que visa retorno a conteúdos “cívicos”, ou melhor, políticos. Diz: “Os algoritmos da Meta haviam parado de recomendar posts deste tipo, já que houve demanda da comunidade para ver menos esses assuntos, que geravam estresse. A ideia era priorizar conteúdos pessoais.” Agora, a produção de estresse diluiu-se através de diversos mecanismos que, retirando as defesas da rede em nome da verdade, ampliam a discussão política e o preconceito contra grupos específicos. Um dos estressados será seguramente os grupos LGBT+.
Finalmente, o quinto, a mudança nas esquipes de moderação da Califórnia para o Texas, segundo analistas, significa passar a moderação de um estado progressista para um conservador. É neste item que revela o caráter de associação ao governo Trump, onde a liberdade de expressão citada serve somente para justificar post de conservadores antidemocráticos. Zuckerberg segue o caminho aberto por Elon Musk, que já havia se associado a Trump na defesa das suas manifestações em suas redes. O curioso é a justificativa de Zuckerberg: “Acho que isso irá ajudar a construir confiança para fazer esse trabalho em lugares onde há menos preocupações sobre os vieses dos nossos times.” Menos preocupações com vieses onde, cara pálida?
A reforma das redes como descidanização
Por isso, é preciso voltar a Morozov urgentemente. Na seção Por outra aldeia global, citada na introdução deste ensaio, o autor coloca a questão central das modificações de Zuckerberg. Depois que Nestor Garcia Canclini, em seu Cidadãos substituídos por Algoritmos (Unesp, 2019) afirmou que o Gafa, que inclui Google, Apple, Facebook e Amazon, reforçou o poder econômico, político e social, “eles não são apenas os maiores polos empresariais e inovadores tecnológicos; além disso, reconfiguram o significado do convívio e das interações. Destroem o sentido de viver junto“. A observação de Canclini combina com a de Morozov sobre a promessa fracassada do ciberespaço de criação de um lugar de debate das questões de relevância mundial. Nada disso. “Nenhuma aldeia global pode vir a existir enquanto não houver infraestruturas sustentáveis para a comunicação e troca, o que só é possível com recursos financeiros (Morozov, p. 180).
É aqui que entra o papel de Zuckerberg com sua reforma cibernética. Com o poder sobre Facebook, Instagram e WhatsApp, possui poder sobre uma infraestrutura planetária considerável, afetando a comunicação entre cidadãos e seus estados e municípios. É nesse sentido que ela se torna uma arma de guerra: ela é capaz de ampliar a fragmentação multicultural, é responsável pela eleição de nada menos que Trump, Bolsonaro e outros políticos mundo afora, e esse autoritarismo eleito é também, na concepção de Canclini, produto da crise cultural e de comunicação da sociedade. Fim das ações cidadãs, fim do voto cidadão: no mundo das redes sociais, a política dá sequência aos MMAs esportivos. Agora, como no esporte, podem ser combinadas diversas artes, como no Mixed Martial Arts, que mistura jiu-jtsu, muay-thai, boxe, kickboxing e do wrestling; na política, passamos a ver o uso de fake news, vídeos editados, notificações oficiais falsificadas, tudo em fim torna-se repertório da direita que passa a usar livremente as armas de que dispõe na sua guerra virtual contra a esquerda.
Precisamos saber como as novas regras da Meta impactam as relações sociais, o nosso convívio via internet e as ações de cidadania. Pois entendo, nos termos de Canclini, que as novas regras implicam diretamente em processos de descidadanização, o que restava de exercício de cidadania nas redes – troca de informações, arregimentação de cidadãos críticos – vai aos poucos deixando de ser ocupado por partidos, sindicados, agrupações feministas e outras militâncias. Ou seja, a Meta afrouxa na fiscalização da matéria-prima das militâncias, as redes sociais, agravando o quadro de luta social ideológica.
A redefinição dos limites da comunicação e da política
A autossabotagem explícita que promovem as redes já foi vista na eleição de Melo. Como é que os porto-alegrenses votaram massivamente no político que colaborou para a fragilização das redes de proteção contra as enchentes? A pergunta repete a mesma de anos antes, quando os brasileiros votaram massivamente em um militar que elogiava as torturas e tiranias. A autossabotagem da cidadania, a capacidade de fazer afrodescendentes e homossexuais votarem em Bolsonaro, é da mesma natureza que levou as vítimas da enchente a votarem em Melo. Não podemos pensar que, em ambas as situações, apenas a promessa de segurança ou vitimização são suficientes. Diz Canclini que as razões são “exposição constante ao desemprego, à insegurança de vários tipos de violência, submissão às formas de governabilidade algorítmica e desgovernabilidade mafiosa” (p.14). Ambos surfaram, numa época de mínimo controle das redes sociais, nos sentimentos de carência, precariedade e insegurança, falhas do sistema neoliberal que se “convertem em recurso para acumular poder dentro do Estado“ (idem). Esse contexto permitiu a emergência de governos autoritários e neoliberais, mas, em outros contextos, de governos democráticos e de esquerda. O que impede que esse processo se generalize com a eleição de governos autoritários, agora que as amarras que limitavam a ação das redes sociais finalmente foram soltas?
O que Zuckerberg fez foi redefinir os limites entre comunicação e política. Se as indústrias culturais assumiram um papel fundamental para a democracia, cabe à esquerda apontar a necessidade de que sejam promovidos os direitos humanos fundamentais e universais, os direitos de gênero, étnico, imigrantes e exilados. A filosofia que mais contribui para a autonomia e pluralidade da esfera pública está sob ataque: se posso criticar abertamente opções LGBT+, taxá-las de “loucura”, a pluralidade da esfera pública está sob ataque. Fim da demarcação entre o público e o privado, e adiante, não apenas ele, mas ente o sagrado e o profano. As medidas da Meta confundem as esferas da ação social, dos partidos e dos meios de luta.
Como se reinventarão os direitos dos cidadãos na era digital monstruosa que se anuncia? Já era difícil inventar cidadania com o universo digital, mas ao menos havia um espaço de manifestação de organizações sociais e da luta pela verdade. Agora, as redes promoverão os atropelos entre partidos políticos, ordem pública, relocalização da cidadania promovida pela deterioração do mundo virtual. Por isso, imediatamente, quando se colocaram as novas linhas do Meta, as pessoas se perguntaram nas redes sociais de WhatsApp: para onde ir? Depois do Facebook, que outra rede social poderia ocupar seu lugar? Lembravam de Mewe, uma rede com 8 milhões de usuários e sem anúncios, Mastodon, com 4,4 milhões de usuários, e Minds, com seus 1,25 milhão de usuários. Os debates foram intensos, mas o resultado é que se chegou à conclusão de que também neles havia o risco de repetir-se a alienação já produzida nas redes sociais da Meta.
No século XXI, o problema é que, enquanto as democracias são locais, as redes são deslocalizadas, como o Facebook. Essa geografia tira poder de decisão dos governos, haja vista os embates que o Ministro do STF Alexandre de Moraes tem com o CEO da Meta. Não apenas nas determinações para retirada de ar de vídeos, muitos de Jair Bolsonaro, mas agora, a própria critica a medida de flexibilização da Meta. Zuckerberg responderá? Duvido. É que, na aldeia global de que fala Morozov, com o advento da internet, perdemos a chance de criar a cultura global. Este era o ideal da juventude de esquerda dos anos 70 e 80 do século passado, a busca de uma comunicação intercultural e internacional que o advento da internet assumiu como promessa nos anos 90. Diz Morozov: “Os fracassos anteriores na construção de um mundo multipolar, de fato internacionalista e com fluxos de informação igualitários e justos, a começar pelos esforços do Movimento dos Países Não Alinhados para criar uma nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação, até a promessa inicial do ciberespaço como um terceiro espaço no qual a sociedade civil global emergente poderia debater questões de relevância universal precisam ser avaliados de maneira muito mais cuidadosa, ao menos para que possamos aprender com os erros “ (Morozov, p. 180).
O que fazer para enfrentar a reforma de Zuckerberg?
A aldeia global das plataformas de Zuckerberg falhou em sua pretensão de ser a atualização da visão utópica de Marshall McLuhan porque ela é incapaz de ceder ao poder corporativo, do interesse geopolítico e estratégico do capital. A aliança com Trump é apenas a continuação da aliança do próprio Elon Musk, que transforma os recursos financeiros que sustentam a infraestrutura da Meta não em lugar de comunicação verdadeira e troca de informações, mas de instrumento de guerra planetária. A rigor, como diz Morozov, sua estrutura é muito mais granular hoje, o que possibilitaria sua reconstrução por outras arquiteturas mais confiáveis. Se Cancilini fala do fracasso das iniciativas de construção de um Espaço Cultural Latino-Americano através de programas de Iber-mídia, Iber-cena, Iber-música e Iber-Museus, que foram vítimas da contração das economias latino-americanas, “não se concretizaram projetos para montar uma TV pública iberoamericana” (p.18), como ele diz, não seria o caso de elaborar projetos de uma rede social pública latino-americana, um sistema a ser compartilhado entre pessoas e instituições, uma rede social sem a Meta? Recentemente, quando a Estante Virtual reformou seu site, migrou milhares de livros para seu novo modelo de página – que recebeu inúmeras críticas, é verdade. Mas e se algo pudesse ser feito com as redes sociais, como o Facebook, de forma a trazer dele, para um ambiente mais seguro, nossa memória?
Esse é o único motivo por que resistimos a sair definitivamente das redes sociais do Meta. Estão ali também nossas memórias. É como o novo lugar de depósito da memória que eles sobrevivem: no passado, tínhamos as caixas onde guardávamos nossas fotografias para olhar num futuro incerto, mostrar aos filhos ou amigos. Quem sabe, numa confraternização, usar como motivo para boas risadas. Agora, quando as imagens deixaram de ser físicas para serem virtuais, quando as caixas de sapato simplesmente desapareceram devido aos processos de reciclagem, nossa rede social se transformou em “caixa de guardados”: depositamos ali nas galerias nossas memórias, temos filmes e imagens de nossos dias passados. Você já se perguntou sobre a data em que entrou para o Facebook? Pois é… O que fazer quando, agora que o Facebook se transformou em nossa memória paralela, pelas necessidades inesgotáveis não apenas de gerar lucro, o que você concordava permitindo acesso a seus dados, já que o benefício da memória era evidente, mas quando agora a Meta resolve levar a necessidade disfarçada de engajar-se à direita a sério, a ser o espaço onde você irá se confrontar exatamente com aquilo em que não acredita? Ainda vale a pena ter redes sociais?
É verdade que as regras da Meta silenciavam vozes. A minha, pelo menos umas três vezes, pelo que me lembro. O motivo: compartilhar indicações de livros de esquerda. Vi muitos colegas, professores universitários e amigos também serem vítimas de cancelamento por parte do Facebook. Eu não estava ensinando como fazer uma bomba, ok, mas sugeria uma leitura crítica do capitalismo – que talvez (risos), para os algoritmos de Zuckerberg, sejam a mesma coisa. Eu mesmo já fiquei desconfiado de que alguém de direita denunciou-me por alguma razão, mas não cheguei a encontrar quem em uma mensagem que recebi, apenas o comunicado da suspensão. Estamos falando do silenciamento de determinadas vozes? Sim. Quais? Na minha experiência, as de esquerda. As que clamam por justiça social, que fazem denúncias do autoritarismo de governos. Esses, sim, vêm sendo silenciados.
O Facebook era ruim e vai ficar pior. Esperávamos que o CEO da Meta dissesse, como no trabalho dos hackers que Morozov admira, que iria “criar ferramentas para garantir que cada um de nós tenha a possibilidade de nos comunicarmos com liberdade e segurança” (p. 181), o que exigiria de Zuckerberg reforço nos mecanismos de controle, e não o contrário. Ele está utilizando, nos termos de Morozov, o “gargalo da política” e não o da tecnologia, como aparentemente seu discurso quer realçar. Quer dizer, a tecnologia que a Meta detém deixa de ser uma força emancipatória para se transformar em seu contrário, uma aliada do retrocesso político no campo virtual. Eugênio Bucci, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo no último dia 9 de janeiro e intitulado As Big Techs e o fascismo, diz com todas as letras: “Promover o trumpismo e todo o seu ideário – ou todo o seu bestiário – não foi um efeito colateral, mas a finalidade do conglomerado monopolista global comandado por Mark Zuckerberg… [as Big Techs] são usinas de propaganda e manipulação a serviço do autoritarismo. Não tem e nunca tiveram nada a ver com educação ou conhecimento”.
O verdadeiro nome disso é fascismo
Por isso, Bucci diz que chegou a hora de chamar a coisa pelo nome: Trump não tem nada a ver com o sonho americano, mas com o fascismo. Mesmo intelectuais como Robert Paxton, que resistiram ao termo, estão revendo sua posição e admitindo que “o que está acontecendo nos Estados Unidos precisa, sim, ser qualificado como fascismo, e as big techs estão no cerne da inflexão. Mais do que correias de transmissão instrumentais, elas são o laboratório que sintetiza a mentalidade obscurantista, as pulsões violentas, os vetores do ódio, a intolerância, ou, sejamos precisos, o fascismo em suas roupagens pós-mussolinicas”. Bucci foi claro e transparente como não se via antes em relação às pretensões de Zuckerberg. Imagina as ambições expansionistas de Jair Bolsonaro se este se reelegesse: anexar o Uruguai? Invadir a Venezuela? Ambos, o eleito e o derrotado, têm adesão à categoria antiga de “espaço vital”. “As big techs são a alma e a arma do negócio: estão para Donald Trump assim como o cinema e o rádio estiveram para Adolf Hitler. Com uma distinção apenas: elas são mais determinantes hoje do que o cinema e o rádio foram naquela época”.
Bucci diz que a partir de agora fica em segundo plano o debate sobre “moderação de conteúdo”, “agências de checagem”, “educação midiática’ e “combate às fake news”. Sem querer, Bucci listou os temas da agenda pós-revolução zuckerbergiana: as big techs podem não querer falar disso, mas a sociedade crítica sim. Contra a era da desinformação propalada pelo dono da Meta, devemos lutar pela informação; contra as redes sociais devemos opor o poder dos blogs de informação e sites de jornais; contra o papel neoliberal atribuído às redes sociais por Zuckerberg, propomos a criação de redes alternativas, substituindo-as por outras que ocupem o espaço ocupado pelo Facebook e congêneres.
A chamada a intelectuais e artistas
O que se propõe do ponto de vista da esquerda é romper o monopólio intelectual das Big Techs. “Antes de tudo, precisamos destruir aos poucos a hegemonia intelectual da Big Tech no que se refere às ideias políticas futuras e do papel que a tecnologia vai desempenhar nelas. Temos de retomar o conceito de cidadania que seja capaz de superar a imagem de que somos apenas consumidores de aplicativos passivos, sujeitos receptivos ao império de uma publicidade global ansiosa para acelerar o extrativismo de dados”. A forma de sustentação desse sistema, diz Morozov, além do financiamento de mídia, é a sedução das marcas. Por isso, cabe aos intelectuais, mas não apenas a eles, a contraposição ao discurso hegemônico que diz que as únicas redes possíveis são as do grupo Meta. É que Morozov também convoca os artistas a fazerem parte dessa reação, pois a introdução que a Meta faz de Inteligência Artificial em suas plataformas “tem consequências perigosas e potencialmente letais – em especial se utilizadas para fins militares”. Ora, entendo que os fins políticos também são extremamente danosos e que são eles que podem estar na origem de muitos conflitos militares, bastando ver a reação à divulgação de Trump, em suas redes sociais, de seu desejo de anexar diversos países.
Quando Morozov convoca os artistas a participarem da reação às mudanças da plataforma, vemos que no Brasil ela já está em andamento: por todo o lado há sátiras de cartunistas que zoam com o próprio Zuckerberg, associando sua liberação da verificação de verdade com notícias falsas o envolvendo. Não foram irônicos os memes do Sensacionalista que dizem que ele, em seguida à suspensão da verificação, teria assassinado a própria mãe? Ou de que Trump teria afirmado que o incêndio na Califórnia teria sido causado por imigrantes assando um cachorro? A exacerbação da ironia aqui é uma arma notável de combate, que serve para mostrar que, mesmo para a direita que ainda tenha alguma racionalidade, as medidas de Zuckerberg não sustentam uma comunicação sadia no planeta.
Finalmente, como afirma Morozov, o cerne da narrativa de Zuckerberg é que a liberdade é algo que o mercado pode oferecer. Não pode porque ela é o resultado das lutas sociais na arena política. Elas haviam sinalizado para o CEO da Meta que suas plataformas precisavam atender ao critério da verdade. A falsa narrativa que prega ausência de métodos de controle em nome da liberdade de manifestação de opinião esconde o fato de que não apenas muitas delas podem ser enquadradas como contravenções penais e serem fake news: como colocamos a questão no início, elas afetam diretamente a democracia. Criticar o uso político do discurso digital de Zuckerberg deve ser tarefa de intelectuais e artistas porque é a “ tarefa na qual tradicionalmente os artistas se sobressaem; essa tarefa não pode e não deve ficar restrita apenas aos intelectuais de visão sociológica (p. 177). Por isso, não podemos falar do bem conquistado com a tecnologia, as redes sociais, a capacidade de comunicação, e, ao mesmo tempo, manter silêncio sobre os caminhos que fazemos para chegar até ele. O modo como fazemos redes sociais importa.
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Foto da Capa: Gerada por IA