Se você ainda não assistiu ao filme Barbie e pretende assistir, pare de ler agora. Este texto contém spoilers: eu vou contar o segredo da Barbie e por que o filme está levando uma legião de fãs a lotar as salas de exibição dos cinemas. Aliás, se o filme tem um mérito é este: o hábito de ir ao cinema assistir a um filme voltou. Se veio para ficar, não sei, mas Barbie, obrigada por isto.
O argumento do filme mostra como a boneca quebrou padrões ao longo dos mais de cinquenta anos de existência. A criação da Barbie, uma boneca adulta, foi ousada para a década de 1960. Na época, as bonecas eram baby dolls e as crianças brincavam de ser mães, alimentar, amamentar e vestir os bebês. O destino de toda a menina era ser mãe até que a Barbie adulta, com seios exuberantes e um guarda-roupa rosa-pink começou a transformar o imaginário infantil.
Assim nasceu o estereótipo da boneca Barbie, criada por Ruth Handler, presidente da fábrica da Mattel, nos Estados Unidos. Magra, curvilínea, loira, branca, sempre montada em um salto alto. A idealização da mulher adulta. Ser bonita era ser como a Barbie. Mas ser fisicamente como a Barbie era o futuro de bem poucas meninas no mundo. Foram anos opressores para mais de uma geração, até que a Mattel entendeu que a Barbie estereotipada era um modelo e poderia haver outras Barbies. Se a menina não pudesse ser fisicamente parecida com a Barbie, poderia ser profissionalmente. Nos anos 1980, a empresa lançou a Barbie profissões. Hoje são 180 modelos. Há também bonecas em diferentes biotipos: magra, gorda, negra, ruiva. Tantas mais bonecas Barbies, maiores as vendas e menor a rejeição.
No filme de Greta Gerwig, o universo Barbie é invertido. A revista Rolling Stones chamou o lançamento de o mais subversivo blockbuster do século XXI. O filme Barbie faz uma sátira inteligente – e até engraçada – sobre o choque entre o mundo encantado da Barbielândia e o mundo real. Ao apresentar o “defeito” de ter os pés chatos e não mais curvados prontos para calçar um salto agulha, identificar umas marcas de celulite na perna e ter pensamentos sobre a morte, a Barbie estereótipo fica abalada. Para ser consertada, ela precisa ir ao mundo real. E assim faz. Ao chegar em Los Angeles com Ken, o casal depara com situações de assédio sexual, desigualdade de gênero, prisão, mas também se humaniza e passa a expressar sentimentos, inclusive lágrimas de choro.
Na expectativa de chegar em uma escola de ensino médio e se sentir amada por todos, Barbie vive um choque de realidade. No local, é rejeitada por adolescentes e percebe não ser tão perfeita como imaginava: “Os homens me assediam e as mulheres me odeiam”. Enquanto a Barbie segue na busca pela “sua dona” para reparar os defeitos, Ken descobrirá o funcionamento da sociedade machista regida pelo patriarcado que tem em cavalos e SUVs Hummer, os símbolos máximos da masculinidade tóxica.
Ken retorna à Barbielândia e implementa as “novas regras” do patriarcado, ocupando a casa da Barbie e fazendo uma lavagem cerebral nas Barbies de todas as profissões, até mesmo na Barbie presidente e na Barbie prêmio nobel. As Barbies tornam-se submissas e mudam de comportamento. Quando a Barbie estereotipada retorna ao mundo encantado e perfeito da Barbielândia, o lugar está transformado e passou a se chamar Kenlândia. Com a ajuda de duas amigas do mundo real, a Barbie trava uma luta entre o feminismo e o patriarcado e consegue retomar o território. Na vitória, ela reconhece em conversa com o Ken que deveria ter sido mais atenciosa com ele, já que “nem todas as noites precisam ser girls nights”. O diálogo parece encaminhar para um final “felizes para sempre” do casal Barbie e Ken. Mas não foi isso.
O segredo da Barbie começa a ser revelado nesta cena. Barbie diz para Ken se enxergar sem ela e buscar o autoconhecimento. “Não é apenas Barbie e Ken, é a Barbie e o Ken”, é uma das frases da parte final, ou seja, dois bonecos inteiros com identidade própria, independente de decidirem ficar juntos ou não. A decisão é por cada um tomar um rumo separado.
Ruth, a criadora da boneca, chega na Barbielândia e chama a Barbie estereotipada para uma caminhada. Na conversa, ela orienta a própria criação a fazer uma escolha: voltar para o mundo perfeito da Barbielândia ou viver no mundo real e enfrentar a desconstrução da imagem idealizada da sua própria imaginação. A boneca decide deixar o mundo da fantasia e viver a imperfeição da vida humanizada e passa a se apresentar como Barbara. O modelo original deixa de existir na Barbielândia.
Por isto, o filme é um convite para quem ama a boneca e vibra com a subversão final e para quem odeia Barbie e se contenta com a deserção da modelo perfeita. O segredo do sucesso do filme é este: a Barbie original mata a Barbie estereotipada.