Alan Moore é um escritor inglês maluco e de um talento descomunal que revolucionou em mais de uma ocasião os sentidos e a forma dos quadrinhos como arte. Hoje Moore é um escritor em prosa com romances e volumes de contos publicados (seu livro mais recente é a coletânea de narrativas de média e curta extensão Iluminações), mas em seu início de carreira ele foi um dos nomes lapidares por trás da ideia de que havia mais a se explorar nos quadrinhos do que mero entretenimento escapista infantil.
Moore escreveu Watchmen, uma história sobre como figuras super-heroicas num universo mais próximo do nosso, do “real”, digamos, teriam um apelo fascista e a existência de seres superpoderosos desequilibraria de modo inevitável o cenário geopolítico em favor do imperialismo americano. Moore fez também o elogio do anarquismo em um quadrinho com tropos do universo dos super-heróis, em V de Vingança. Escreveu histórias de um afeto sincero voltadas ao Super-Homem. Retrabalhou grandes personagens da literatura de aventura da Era Vitoriana inglesa numa versão toda própria de uma equipe de “super-heróis” em As Aventuras da Liga Extraordinária. Todos esses títulos citados foram adaptados para o cinema, mas não pense que você conhece o material original porque viu os filmes, são todos bem ruins, produções feitas por gente que parece disposta a encarar o material original como um storyboard elaborado, sem entender seus temas e conceitos.
E sabe outra coisa interessante sobre Alan Moore, esse cara que está lá na origem de todo o papo das últimas décadas de que se pode tratar “histórias de super-heróis” como veículos para ideias “adultas”? Alan Moore hoje é um dos maiores críticos do infantilismo geral provocado pela ideia de quadrinhos de super-heróis “adultos”.
A sofisticação de Moore
Há um elemento sofisticado no fundo dessas histórias criadas por Moore – talvez sofisticado demais para o público médio de quadrinhos contemporâneo, e por isso ele seja tão mal interpretado, às vezes até despercebido. Mesmo escrevendo histórias de super-heróis, Moore dedicou boa parte de seu trabalho a construir narrativas que levariam seu público a desconfiar dos motivos por trás das ações dos heróis – e ainda assim, chegamos a 2023 com o gênero sendo dominante na cultura pop, com marmanjos de barba na cara reclamando porque novas interpretações estão “roubando a essência” de seus personagens favoritos em nome de um espantalho chamado “cultura WOKE” que eles mesmos não conseguem definir.
Moore já disse, em mais de uma ocasião, que vê isso como o resultado direto da proliferação das narrativas de super-heróis e da paixão infantilóide que o leitor adulto cultiva por elas. Qualquer entrevista recente concedida por ele (e ele andou concedendo um bom número delas nos últimos dois anos como forma de divulgar seu livro de contos Iluminações, cuja resenha você pode ler aqui) vai trazer alguma variação da mesma declaração, então vou pegar uma aleatória, concedida para o site americano Screen Rant e publicada faz bem pouco, em 4 de outubro (veja aqui):
“Em grande parte, comecei a ver o super-herói – que é um fenômeno americano, tentamos copiá-lo para o resto do mundo, mas é na prática um fenômeno americano – e tendo ficado bastante desiludido com a indústria americana dos super-heróis, e tendo sobre ela um olhar de fora nos últimos vinte anos, começo a ver os super-heróis sob uma luz muito mais sinistra”, diz ele a certa altura.
Talvez Moore exagere um pouco ao ver uma relação muito direta entre a atual popularização dos super-heróis como veículos de fantasia escapista e a ascensão da extrema-direita, as coisas são mais complexas do que isso e há muito mais elementos, intencionais ou conjunturais, em jogo. Mas em um aspecto ele tem total razão: ambos são fenômenos produtos da mesma paisagem simbólica, a ideia muito contemporânea de vender nostalgia e soluções mágicas para enfrentar questões muito complicadas.
Quadrinhos de super-heróis têm um discurso no plano simbólico e outro no plano temático. Conforme Moore comentou no trecho que destaquei aqui, são uma mídia essencialmente americana, e, portanto, os supostos “valores” de seu discurso se assentam no “poder com responsabilidade”, tal responsabilidade consistindo em ações unilaterais de imposição da vontade pela força, mesmo que tomando uma curva por fora do sistema legal. Banhado na atmosfera altamente individualista da sociedade estadunidense, o super-herói foi por anos, e sem surpresa alguma, a representação simbólica da autoimagem dessa sociedade.
Moore já declarou que vê a origem do Super-Homem, justamente o primeiro e mais “poderoso” dos heróis de quadrinhos, como um símbolo que foi capturado pela mentalidade corporativa americana para sedimentar-se como algo contrário ao que representava quando foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, nas palavras de Moore, “dois adolescentes da classe proletária de Cleveland no meio da Depressão, que criaram um personagem que era uma fantasia de poder para a desempoderada comunidade da classe trabalhadora”.
O Super-Homem, Moore lembra, “era um imigrante, mas não era forçado a se vestir com os tons marrons e cinzas da maioria das outras pessoas na fila do sopão na década de 1930. Ele usava cores primárias brilhantes e podia pular pelas ruas que eles tinham que percorrer em busca de trabalho. Em suas origens, o Super-Homem espancava fura-greves e jogava o dono de um cortiço para além do horizonte. Obviamente, não durou muito. Ele logo foi tirado de seus criadores e se tornou um personagem de classe média e de direita muito mais respeitável socialmente“.
Sentidos subterrâneos
A recente abordagem “sombria e realista” de Zack Snyder para o personagem no cinema, por exemplo, consegue ser, esteja ele ciente disso ou não, um símbolo bastante preciso do comportamento americano como superpotência intervencionista defendendo seu “modo de vida ” e deixando uma trilha de estragos e uma multidão de mortos no rastro de suas declaradas “boas intenções”. Indo para a outra editora para não brigar entre nerdola, personagem da Marvel que encarna o país até no nome, o Capitão América, também é a representação de um discurso patriótico geral que foi sendo atualizado desde sua criação. Jô Soares (sim, aquele mesmo) escreveu em um artigo publicado no clássico Shazam!, coletânea de ensaios organizada por Álvaro de Moya em 1977, que é bastante interessante o simbolismo de “arma” usada pelo herói, um escudo.
Surgido durante a II Guerra, o herói ataca com um artefato de defesa, o que traz à memória vários debates na história americana (alguns bastante recentes) sobre “ataques preventivos” justificados como reação a uma ameaça iminente, mas não presente (as armas de destruição em massa no Iraque, por exemplo). Embora a versão apresentada no MCU, a versão cinematográfica dos heróis da Marvel, tenha conseguido, graças ao carisma de seu intérprete, reverter parte de uma má vontade anterior do público, que o considerava antiquado, é também significativo que o Capitão América seja aquele personagem que, consistentemente ao longo de vários filmes, manifeste algumas das visões mais individualistas de todo o elenco de personagens do MCU. Um individualismo radical que, em outros contextos, vem sustentando parte de alguns discursos mais danosos dos últimos anos, em particular durante a pandemia.
Uma visão crítica dos quadrinhos de super-heróis no próprio meio não é, como muitos pensam, algo que surge com Moore ou com Frank Miller nos anos 1980. Já havia algumas abordagens semelhantes no Batman de Dennis O’Neil e Neal Adams, os mesmos criadores que colocaram a dupla Arqueiro Verde e Lanterna Verde viajando pela América tomada por problemas como violência, pobreza generalizada e drogas. Mas claro, Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e Watchmen, de Alan Moore, são o ápice dessa visão – e o que parecem ter criado, em retrospecto, foi uma legião de leitores para quem super-heróis seriam conceitos desejáveis no mundo real. O sucesso dos personagens no cinema, aliás, parece ter combinado essa ideia com outra bastante difundida pelo fandom entusiasta do gênero nos últimos anos (e bastante equivocada), a dos heróis de quadrinhos como equivalentes contemporâneos da mitologia tradicional.
Lendas e HQ
Em narrativas tradicionais, é comum que o poder seja um objeto a ser conquistado pelo protagonista. Artefatos mágicos, armas ancestrais, medalhões e anéis de poder, etc. O super-herói é, assim, uma versão desse tipo de história que leva a coisa a um novo patamar e faz com o que o poder encarne na pessoa. O Super-Homem não precisa de uma capa mágica para voar. O Flash não precisa de sandálias especiais para correr. As exceções, como o Homem de Ferro ou o próprio Batman, deixam claro que mesmo usando artefatos para aprimorar sua performance, eles são itens criados pelo próprio herói, parte, portanto, de seus próprios dons especiais, no caso, um intelecto genial.
Pode parecer um detalhe menor, mas acho que aí está um dos elementos que explicam um dos aspectos mais curiosos da contemporaneidade: com um grupo cada vez maior de figuras sinistras apelando com graus mais ou menos despidos de constrangimento para a figura do super-herói como uma metáfora da sua própria ação política, quase sempre voltada a um conservadorismo neoliberal que muitas vezes descamba na extrema-direita. Ou, como comenta Moore na entrevista já citada:
“Acho que outra forma de os super-heróis serem insidiosos é que seus valores parecem se infiltrar no mundo real. Todo mundo quer ser um super-herói. Elon Musk costumava se orgulhar da ideia ser um “Tony Stark da vida real”, como seus admiradores o chamavam. Quando Donald Trump lançou suas NFTs há algumas semanas, vi que uma delas o trazia como um super-herói com raios saindo dos olhos, parecendo algo saído de The Boys. O ‘sonho do super-herói’ é uma coisa perigosa, porque essencialmente é fascismo.“
Delírios do Real
O exemplo mais recente, claro, acredito que todos viram, foi o Bozo argentino Loco Milei, atual presidente eleito da Argentina. Foi o resultado ser anunciado e começou a circular uma nova imagem de Milei fantasiado de super-herói, tema que foi recorrente durante toda sua campanha. Vídeos nos quais Milei encarnava o “herói que a Argentina precisava”, fantasiado e tudo com um uniforme preto e amarelo, foram parte de seu arsenal de comunicação pelas últimas semanas. Suas referências não eram apenas os heróis aos moldes americanos mas personagens de animes e mangás como Chainsaw Man, por exemplo.
Antes dele, aqui mesmo no Brasil da era Bolsonaro, o famoso “véio da Havan” fazia recorrentes aparições públicas vestindo o que, imagino, seria a sua ideia para “uniformes de herói” verde-amarelos (um deles, não sei se voluntariamente, o deixava na verdade muito parecido com uma versão tupiniquim do vilão do Batman, o Charada). Recuando alguns anos ainda, durante os períodos pré e pró derrubada de Dilma do poder, o juiz da lava-Jato, Sergio Moro, era representado com roupa de Super-Homem e havia mais de uma versão brasileira do Batman imiscuído entre as manifestações de direita que pediam mais “ordem e segurança”. Sobre isso, aliás, sempre achei a adoção de personagens como Batman e Justiceiro por fatias truculentas da população, entre elas parte das forças policiais, algo engraçado, dado que esses são dois personagens que só podem existir fora da legalidade, exercendo um vigilantismo que consideram necessário porque a polícia é, para eles, muito corrupta, muito ineficiente, ou ambos.
É curiosa essa apropriação contemporânea pela direita de personagens e de elementos dos quadrinhos. Além, claro, de ser uma estratégia para tentar alcançar parcela mais jovem da população, ela revela, segundo Moore, um tipo de pensamento político que está interessado em soluções fáceis encarnadas em um “líder” que, por suas características especiais, seria o único “herói” disponível para, por meio de suas amplas capacidades, autoproclamadas, claro, “salvar” seu país ou seu povo de situações complexas. Para Moore, portanto, o caráter escapista da fantasia heroica possibilita esse tipo de apropriação. Para o pesquisador de quadrinhos Alexandre Linck, da UNISUL e do canal Quadrinhos na Sarjeta, isso não é uma característica inerente do meio, mas uma produção de sentido estratégica que vai abraçando novas configurações com o tempo.
Qualquer que seja o fundamento de base desse fenômeno, contudo, o resultado no mundo real, claro, por enquanto é o mesmo até o inevitável momento em que a complexidade do real venha arrancar as máscaras desse tipo de personagem, não importa quão coloridas sejam.