Considerando o quanto seus meandros e sutilezas têm impacto e consequências na vida cotidiana de milhões, é interessante notar a ausência acintosa da política profissional e de seus bastidores na literatura brasileira, principalmente a que vem sendo feita desde a redemocratização do país. Talvez por um certo consenso contemporâneo tácito de que o escritor deve escrever sobre o que conhece, já que a maioria dos escritores brasileiros de certo renome ganha a vida como profissional da palavra em alguma das várias oportunidades de pagar boleto nesse campo (jornalista, publicitário, tradutor, editor, colunista de jornal – não, não é a mesma coisa que jornalista – etc). Parece-me, aliás, que os protagonistas de romances nacionais nas últimas décadas se tornaram muito semelhantes ao perfil de seus criadores, que por sua vez já era ele próprio meio pasteurizado.
Essa conclusão, aliás, não é só minha, é da equipe da professora da UnB Regina Dalcastagnè no Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC), que vem realizando um mapeamento constante dos romances publicados pelo mainstream do mercado editorial do Brasil de 1990 para cá, e que apontou que os escritores brasileiros são, na média, brancos (93,9%), homens (72,7%), moram no Rio de Janeiro e em São Paulo (47,3% e 21,2%, respectivamente). Já os personagens desses romances são, em sua maioria, homens (62,1%) e heterossexuais (81%). Costumam ganhar a vida como escritor (8,5%), bandido ou contraventor (7%) e artista (6,3%). As personagens femininas são donas de casa (25,1%), artistas (10,2%) ou não têm ocupação (9,6%).
Literatura como gesto político
Parte desse quadro vem passando por mudanças significativas justamente na última década, entre outras coisas por conta de romances escritos por autores que fogem a esse perfil e trazem uma diversidade maior de personagens e temas, seja em termos de raça (“Marrom e amarelo”, de Paulo Scott; “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório; “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior), de gênero (“A pediatra”, de Andrea del Fuego; “Suíte Toquio”, de Giovana Madalosso; “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei; “Nada Vai Acontecer com Você”, de Simone Campos e uma infinidade de outros exemplos), de etnia (“Eu sou Macuxi e outras histórias”, de Julie Dorrico; “O Som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk), de sexualidade (O amor de homens avulsos”, de Victor Heringer, “Todos nós adorávamos caubóis”, de Carol Bensimon; “As coisas”, de Tobias Carvalho; “Amora”, de Natália Borges Polesso) e até mesmo de classe (com autores que trazem a periferia para o centro da narrativa, José Falero, com “Os supridores”, e Geovanni Martins, com “Via Ápia”).
São todos, claro, livros políticos apenas por existirem, porque sua própria concepção e existência se dá no âmbito de uma luta de maior representatividade na sociedade brasileira e de um ecossistema mais variado de personagens e experiências plasmadas na nossa literatura. Mas não são esses os livros nos quais eu pensava quando escrevi o primeiro capítulo deste texto. O que me deixa intrigado é porque, mesmo com esta mudança declarada no horizonte, não temos muitos exemplares de ficção realmente ambientado no mundo ou nos bastidores da política profissional, essa tão presente em causas e efeitos na realidade do país.
Razões
Uma das razões pode ser o próprio caráter tortuoso e muitas vezes velado da política profissional, com suas concertações, combinações, acordos, pactos, tramas, transações, traições, rupturas, reconciliações, maracutaias, trampas, confrontos, alianças e uma pletora de substantivos correlatos. Os convolutos jogos internos dos políticos profissionais não são para amadores, e talvez por isso os exemplos à mão na narrativa nacional venham realmente de jornalistas com trânsito pelos gabinetes ou, em caso contrário, se ancorem numa extensa pesquisa que coloca a atividade política de um personagem como um elemento a mais num caudaloso relato com várias outras vertentes e descaminhos.
Outro dos motivos para essa ausência pode ser simplesmente de escala e até mesmo de concorrência. Ao contrário do que muitos acreditam, o mundo de um romance ou de um conto não aceita tudo, ele aceita tudo aquilo que foi postulado e estabelecido pelas suas páginas imediatamente anteriores – nesse sentido, cada nova palavra acrescentada em um texto deveria levá-lo de modo inevitável a restringir ainda mais as suas possibilidades internas até chegarmos àquele desenho narrativo que só aquele texto, com aquela forma, aquelas regras e padrões internos poderia ter. E bem, fora da comédia do absurdo ou da sátira desbragada, imaginar qualquer narrativa nos bastidores da política é se ver, em desespero, diante de um cipoal de improbabilidades que jamais seriam aceitas no interior de uma narrativa sem que ela colapsasse por dentro. Traduzindo para quem está viciado em pensar no formato de tuítes: a política real oficial do Brasil é tão cheia de episódios absurdos ou surrealistas que qualquer narrativa ficcional sobre seus bastidores está fadada a ficar aquém do real ou a ser uma colcha absurda de ações histriônicas ou inacreditáveis.
Já era assim antes do circo de horrores promovido nos últimos quatro anos de governo de nosso ora foragido ex-presidente da República. Analisados na minúcia e no detalhe que compõem muitos bons romances, todos os escândalos políticos do Brasil redemocratizado são mais inacreditáveis que qualquer ficção, e com um potencial de indignar e de provocar risos em igual medida.
Conhecimento interno
Talvez por isso o sarcasmo seja o tom adotado por muitos dos escritores que abordaram a política “por dentro”, um exemplo sendo “Dona Anja”, de Josué Guimarães (escritor que, jornalista de formação e homem político por temperamento, tinha ele próprio o conhecimento em primeira mão desse tipo de bastidor). Publicado em 1978, “Dona Anja” é uma sátira desbragada em que um grupo de políticos respeitáveis de uma cidade do interior se reúne para acompanhar pelo rádio, em 1977, a votação da lei do divórcio, mudança radical na legislação brasileira que, na visão da maioria desses políticos de viés conservador, pode ser uma pá de cal nos “bons costumes” e na “família brasileira”.
O detalhe mordaz é que essa reunião se dá no bordel da cidade, propriedade da Dona Anja do título. E um dos parlamentares mais angustiados com os rumos da votação, que tornaria a separação legal, é um velhote picareta que vem enrolando uma amante mais jovem dizendo que só não a assume como companheira porque não tem como se divorciar de sua legítima esposa. Prevendo o escândalo e a saia justa em que se verá metido com a aprovação, o homem infarta em pleno puteiro enquanto vocifera contra a degradação dos costumes que aquela lei representa.
Outro autor que escreveu um livro sobre política com o conhecimento de quem trabalhou nos seus bastidores é o também jornalista Caco Belmonte, que, em 2018, lançou o romance “Lambuja”, protagonizado por Jorge, um jornalista em crise pessoal, profissional e financeira, tentando arranjar dinheiro para saldar algumas dívidas prementes enquanto cumpre o expediente de um dia como assessor temporário no gabinete de uma deputada de esquerda – uma promessa de contratação está no horizonte, mas pode ser melada pela sabotagem miúda de seus colegas, entre eles o próprio chefe de gabinete, e pelas ingerências da política além do seu controle, como a pressão do partido para que a vaga que ele cobiça vá para uma filha de um correligionário. Para além de um retrato da política, é também um retrato do mundo do trabalho, espécie de Os Ratos atualizado, em que Jorge, Naziazeno contemporâneo, percorre as ruas de uma Porto Alegre muito mais indiferente do que a retratada por Dyonélio Machado nos anos 1930.
Pano de fundo
Há outras exceções pontuais recentes que também acenam para o universo da política, como “A Primeira Mulher”, de Miguel Sanches Neto (2008), “Habitante Irreal”, de Paulo Scott (2011), e “Abaixo do Paraíso”, de André de Leones (2016). Sanches Neto narra a história de um professor de meia-idade procurado por sua ex-mulher, candidata à prefeitura de uma cidade do Interior, que o incumbe de encontrar o filho dela, misteriosamente desaparecido. A investigação do protagonista logo se esvai num mergulho em seu próprio passado que vai desembocar numa saída metalinguística que de modo algum oferece respostas.
Scott faz, por meio do protagonista da primeira metade de Habitante Irreal, Paulo, uma crônica amarga e desencantada do primeiro mandato do PT à frente da Prefeitura de Porto Alegre, mas logo seu romance se expande e deixa de lado esse ambiente para trabalhar questões mais fundas de identidade. E em Abaixo do Paraíso um faz-tudo de um político é enviado na missão de entregar uma mala cheia de dinheiro a um tipo suspeito, mas a negociata dá errado e o protagonista termina fugindo em direção ao Interior de Goiás, de onde saiu, num misto de road movie existencial em que mesmo o suspense da fuga não toma nunca o primeiro plano.
Nos três casos, portanto, o tema político é apenas um pretexto parcial ou, no máximo, um pano de fundo logo abandonado em favor de outra história que o escritor estava mais interessado em abordar.
Caso de polícia
Logo, fica claro que, para além da sátira, é provável que não haja muitos caminhos para o retrato da política nacional na literatura além da cruza delirante com uma vertente do romance policial. O que nos leva ao provável melhor romance político brasileiro, não por acaso um misto de romance histórico e história policial, Agosto, de Rubem Fonseca. Em Agosto, os rumos da crise política de agosto de 1954, quando um atentado foi perpetrado contra o mais feroz crítico e opositor de Getúlio Vargas, Carlos Lacerda, levando ao abalo das instituições e ao enfraquecimento da própria posição de Getúlio como presidente eleito – principalmente quando as investigações do caso revelam, como mandante do crime, seu guarda-costas e homem de confiança, Gregório Fortunato.
Para tentar escapar da armadilha que muitos consideram o temperamento evasivo e pouco aberto de Getúlio como matéria de ficção, Fonseca combina essa narrativa com os rumos de uma investigação policial conduzida pelo Comissário Mattos, um dos tipos masculinos clássicos de Fonseca, um delegado incorruptível e mulherengo cuja sensibilidade artística e honestidade o tornam um elemento à parte na estrutura irredimível e corrupta da polícia. O caso de um industrial assassinado por um homem negro durante uma relação homossexual pode ter, a narrativa insinua, relações insuspeitas com o caso maior da crise política que se desenrola de modo simultâneo. Embora seja um romance sobre Getúlio, o político aparece muito pouco, ficando a narrativa entregue a outros personagens que o contemplam de longe: sua filha Alzira, o próprio Gregório e mesmo um senador e seu assessor fictícios, por meio dos quais o escritor desdobra com domínio técnico preciso o quadro político maior.
O que talvez explique também a ausência da política de bastidores na narrativa contemporânea. Bem ou mal, Agosto fala de um dos personagens políticos mais interessantes da política nacional, e parte de sua grandeza vêm dessa vinculação. A todos os futuros ficcionistas interessados em preencher essa lacuna, meus mais sinceros votos de boa sorte em conseguir efeito parecido com tantas figuras políticas mesquinhas e minúsculas que hoje nos cercam.
Foto da Capa: Getúlio Vargas em 1953, no lançamento da Petrobrás
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