Por exemplo, posso dizer que não estava na expectativa pela nova edição do Big Brother, mas que eu preciso acompanhar o programa para estar por dentro do que os meus pacientes veem na televisão e, assim, poder de escutá-los melhor.
O mesmo vale para os – outros – reality shows ruins: afinal, como vou entender as formas contemporâneas de subjetivação se eu não fizer o enorme esforço de passar um domingo todo assistindo ao De férias com o ex?
Por um lado, claro que estou sendo irônico, meu querido leitor. Não vejo problema algum em alguém querer “esvaziar a cabeça” vendo qualquer coisa na televisão enquanto arrasta a timeline do Twitter pra cima. Em tempos de fascismo pornográfico, como criticar quem prefere a burrice e a inabilidade social de uma dúzia de jovens embriagados de hormônios jogados em uma ilha paradisíaca às notícias da Globonews?
Mas – o outro lado – também sou firme na posição de que faz parte da formação de todo terapeuta estar atento ao que se manifesta na cultura. Afinal, nossa subjetividade não se constitui só pela forma como fomos criados e pelas nossas memórias de infância, mas também pela nossa relação com os precipitados culturais que nos circundam.
O que significa dizer que os seriados enlatados e os reality shows são um campo riquíssimo para entendermos o modo como cada um de nós se enreda e desenreda dentro das malhas do laço social.
O Big Brother diz muito mais sobre nós do que o último filme de Lars Von Trier (apesar de gostar muito deste diretor), ainda que os pretensamente eruditos de plantão não comunguem desta ideia.
Haja paciência para suportar os blasés que fazem da sua reclusão uma virtude.
Assistir às edições anuais do BBB é como dar uma espiada pela fechadura de nossa subjetividade.
Aliás, talvez haja poucos programas que nos sirvam tanto como uma analisador cultural quanto o Big Brother.
Não vivemos, afinal, como se estivéssemos todos dentro de uma casa de vidro? As redes sociais são uma boa representação da nossa inelutável alienação ao olhar do outro: até porque é impossível definir quem somos se não através daqueles que nos olham e nos dizem algo sobre nós.
Fundamentalmente, nós somos inacessíveis a nós mesmos: nascidos dentro de uma sociedade com seus valores, referências e lugares de reconhecimento, nós não temos uma essência íntima, mas somos tão somente o reflexo que os outros nos devolvem. A ilusão de que somos autocontidos e autodefinidos é uma das tantas que é vendida pelo neoliberalismo, é uma declinação da suposição de que poderíamos existir e nos bastar em nós mesmos. Supor-se construído por si mesmo – os self made men – é a denúncia da exclusão do outro, do apagamento da alteridade.
Neste sentido, há um interessante paradoxo explicitado por atrações como o Big Brother. Apesar de a premissa do programa, pelo menos nos seus primórdios, ter sido a de visibilizar a intimidade dos participantes, sabemos bem que nunca se tratou disso. Quando percebemos que estamos sendo filmados ou vistos por outros, nós tendemos a fazer uma “curadoria” de nós mesmos, mostrando aquilo que supomos ser esperado de nós, e o que supostamente somos. Entramos neste jogo de adivinhar o que a mundo à nossa volta deseja e de nos identificarmos com isso.
Nada mais desconfortável do que estar em um ambiente monitorado por câmeras. Aliás, basta uma placa dizendo algo como “Sorria, você está sendo filmado” para nos tornarmos autoconscientes de como estamos nos mexendo, falando, nos portando – mesmo que, efetivamente, não haja câmera alguma ali, só a placa.
Entretanto, não há como resolver este paradoxo de uma forma binária, por uma distinção que aproxime o privado do verdadeiro e o público do falso. Se somos constituídos pelos olhos dos outros, então a nossa intimidade repousa mais naquele que nos vê do que em nós mesmos. Somos um enigma para nós mesmos. Há que se conviver com isso, com o fato de que nós somos a performance que nós apresentamos, de que a máscara que usamos diz muito sobre o que há de mais íntimo em nós.
E isso se torna ainda mais evidente quando pensamos que há toda uma geração que nasceu já em um mundo em que existia o Big Brother. A primeira edição americana foi ar no ano 2000, e já era baseada em na versão holandesa do programa, de 1997. No Brasil, a estreia foi em 2002, ou seja, há vinte e um anos.
Se pensarmos que o Big Brother não é apenas um reality show, mas também um analisador que capta aquilo que está na cultura, então todos aqueles que hoje estão entre seus vinte e trinta anos se constituíram em uma sociedade em que nos imaginamos no paredão da vida, performando atitudes, gostos e comportamentos para atrair o amor do público e não sermos eliminados da casa.
Isso aparece no consultório como uma sensação de vazio, como uma perda da referência da própria história familiar e pessoal na construção de uma narrativa de si. Quase como uma terceirização do desejo: nos vemos tão alienados ao amor dos outros que, por vezes, perdemos a capacidade de nos perguntarmos se a nossa vida condiz com a herança que recebemos e com os valores que nos constituem – e com o que esperamos fazer com isso.
Estamos todos em busca do prêmio final, mesmo que para isso precisemos colocar todos os outros como o público a ser agradado, e não como parceiros em um jogo cujas regras no fim das contas desconhecemos, mas que poderíamos inventar juntos.