Linguagem é um instrumento poderoso. Seja você um partidário da abordagem “mística”, ao estilo Alan Moore, que vê no aprendizado da magia o estudo de uma linguagem, seja você mais técnico e materialista ao estilo de Marshall McLuhan, para quem a linguagem é uma das mais antigas e impactantes formas de tecnologia, o fato é que as palavras que usamos consolidam a mentalidade de uma sociedade. O que também significa, em revés, que as palavras que uma sociedade escolhe em detrimento de outras dão testemunho do que uma determinada comunidade prioriza em termos filosóficos, estéticos e, vá lá, morais. Já escrevi um pouco sobre isso aqui mesmo na Sler quando falávamos de como a ascensão ao poder de uma extrema direita vitriólica e desbocada deslocou os tabus que cercavam o palavrão como “palavra interdita”. (leia aqui).
O que me leva à minha perplexidade específica de hoje, uma que já me acompanha há um bom tempo, mas que só se intensificou nos últimos anos, com o fenômeno tendo deixado o nicho audiovisual da internet para contaminar o que deveríamos considerar a “grande mídia”: quando foi que deixamos tão naturalmente a linguagem do mercado ser aquela que usamos para falar de arte em geral (e de cinema em particular)?
Franquia
Sou velho o bastante para me lembrar de quando a palavra “franquia” estacionou sua réplica de Mustang na linguagem corrente nacional, originalmente ainda chamada pelo seu nome de batismo na língua inglesa, “franchise“. No final dos anos 1980, de pesada orientação política e econômica neoliberal – um pouco como hoje, aliás –, disseminou-se um culto messiânico ao pequeno empreendedorismo como uma resposta possível ao fato de que a “nova economia” de grandes corporações e de um mercado financeiro volátil e ganancioso não consegue mais sustentar a promessa de uma boa vida ao trabalhador assalariado por mais diligente e competente que ele seja em seu trabalho. Assim, dissemina-se a ideia de que cada um “se torne seu próprio patrão” (hoje, essa ideia vem se transformando para “conquiste sua independência investindo no mercado financeiro”, mas o espírito e a razão por trás ainda são as mesmas).
Claro, na prática, o conceito de “franchising” em inglês advém de algo que já temos há muito mais tempo em português, o verbo “franquear”, no sentido de “garantir livre passagem” (aliás, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antônio Geraldo da Cunha encontra o primeiro registro do termo com essa acepção no Livro das Cidades e Fortalezas que a Coroa de Portugal tem nas partes da Índia e das Capitanias e mais cargos que nelas há, e da importância delles, redigido em 1582).
O termo tem origem francesa mas não deriva de “francês”, e sim dos “francos” – tribos germânicas ocidentais de homens “livres” que foram desalojando os romanos ao longo da Alta Idade Média e se mesclaram a remanescentes e gauleses no território que hoje conhecemos como França. “Franco” como alguém sem meias palavras e de discurso reto e direto vem também da mesma nascente. Ao longo dos séculos, foi adquirindo, tanto em inglês como em português e espanhol, outros sentidos. Um deles, o de libertar alguém de servidão ou de escravização, hoje se tornou obsoleto pela abolição da escravidão legal. E também surgiu um outro sentido econômico, o de isenção de impostos ou taxas. Esse, mesclado com o de garantia de pertencimento a uma espécie de corporação, logo geraria um novo significado, mais atrelado ao campo semântico da economia: o direito ou licença concedida a um indivíduo ou grupo para comercializar bens ou serviços de uma empresa em um determinado território.
Anos 1980
É com essa acepção que ali na segunda metade dos anos 1980 começam a circular no português corrente “franchising”, o processo de se vincular a uma franquia, e “franchise”, a franquia propriamente dita. Em 1988, a própria Globo, então uma gigante monopolista ainda maior do que hoje, com a pulverização dos streamings, reconhece a tendência com a criação de um programa específico de TV voltado para os pequenos negócios, que também seria expandido no mesmo ano para uma revista de mesmo nome publicada pelo braço editorial da organização. Não é por acaso que uma das chamadas de capa do primeiro número da revista, lançada em dezembro de 1988, era “Tudo sobre franchising no Brasil”.
“Franchising” se tornou um termo corrente para, por exemplo, pequenos restaurantes que contratavam os direitos de uso de uma marca comprometendo-se com um menu preestabelecido (como no McDonalds, a franquia máxima do gênero). Ou para lojas que se tornam as revendas oficiais de mercadorias consignadas de um fabricante específico de mercadorias variadas, como a Boticário, apontada pelo jornalismo econômico, na última vez que consultei, como a mais bem-sucedida franquia nacional.
Tendo isso em mente, nunca deixou de me surpreender que essa tenha sido a palavra que se popularizou em português também para definir ficções culturais seriadas voltadas ao consumo de massa – com uso mais frequente no cinema, mas também de bastante circulação franca entre os apreciadores de videogames (esta semana, mesmo, um dos assuntos mais falados foi um novo trailer para a série GTA, da empresa Rockstar (foto de capa). Não encontrei muitos indícios sólidos de quando esse começou a se disseminar, então vou ter que contar com o auxílio dúbio da memória.
Que eu me lembre, há alguns exemplos de uso desse termo “franquia” nesse contexto no início dos anos 2000 em jornais e revistas brasileiros. Faz sentido. Foram anos em que, sei lá por quê, muitos dos meus colegas de profissão decidiram enterrar na lama seus instrumentos de trabalho e simplesmente anarquizar de vez o uso do idioma com uma série de penduricalhos inúteis literalmente transcritos ou apenas mal traduzidos de outros idiomas para descrever ou narrar conceitos (de propaganda e publicidade, em sua maioria) que já tinham seu próprio equivalente em português, apenas desconhecido da ignorância vernacular média gigantesca do jornalista médio. Esse processo, aliás, não diminui, eu diria que se tornou mais frequente e que até mesmo extrapolou o jornalismo porque hoje todo mundo é meio que um “veículo de mídia” em suas redes e usa os mesmos termos mal traduzidos como se estivesse tudo bem (o famigerado “é sobre isso” é o meu exemplo preferido atualmente)
Voltando ao tópico (eu não deveria escolher esses assuntos mais complexos com a facilidade que eu tenho para desviar do assunto…) Que fique claro que o início dos anos 2000 não é o do “surgimento” do modelo das “franquias”, algo que claramente pode ser traçado até Jornada nas Estrelas ou, anos mais tarde, Guerra nas Estrelas. É nesse período que o “termo” começa a circular na imprensa brasileira para definir algo que já era uma realidade da indústria comercial do cinema
“Franquia”, assim, veio a substituir “série” para definir produções episódicas de filmes, livros, games ou, como é mais comum nas últimas décadas, tudo isso junto, já que boa parte das produções comerciais hoje tentam emplacar “produtos” (logo voltaremos a essa palavra) que gerem receita em vários formatos. Não me lembro de o termo ter sido usado no Brasil originalmente com sentido crítico, o mais provável é que tenha sido, como eu comentei, uma tradução ruim que começou a circular na imprensa naqueles anos para o que em inglês já se chamava de “franchise”.
Contudo, um pouco de sarcasmo me parece apropriado dado o atual estado do cinema contemporâneo, em que qualquer estúdio quer replicar o sucesso da Marvel – que, por sua vez, está tendo seus próprios problemas tentando convencer seus fãs a comer os Big Macs audiovisuais que ela lança em ritmo de linha de montagem – o uso de “franquia” para produções feitas por um gigantesco conglomerado seguindo a mesma receita que deve preservar o “valor da marca” para além de qualquer outra consideração. Mas, claro, boa parte do atual discurso produzido pela mídia cultural, seja a da imprensa tradicional, seja a dos YouTubers, blogueiros e TikTokkers, não está usando o termo com essa pegada debochada. Não, não passa um dia sem que o diabo do algoritmo me apresente “influenciadores” discutindo como colocar nos eixos “franquias cinematográficas” recicladas de modo tão exaustivo que nem dinheiro mais dão, o único objetivo desse tipo de produção, elas estão conseguindo fazer. Como se o próprio conceito original de franquia levado ao cinema não fosse ele parte importante do problema.
O produto
Tendo a sequência de episódios de uma nova produção sido renomeada como franquia, a conclusão lógica é que o que está sendo produzido não são filmes, livros, histórias, mas “produtos” que levam adiante não uma visão criativa ou meramente artística, mas as ações da marca proprietária. Isso talvez explique também como começou a circular nas últimas duas décadas outra expressão infame trazida sem escalas da mídia inglesa e que eu já vi mais de um de meus pares do jornalismo cultural usar sem a menor vergonha na cara: “propriedade intelectual” (em inglês, a expressão é mais conhecida pela sigla IP).
Que o conceito de “propriedade intelectual” tenha saído do cipoal do jargão jurídico para se tornar corrente no léxico do próprio jornalismo cultural é uma triste demonstração de como vivemos hoje um dos períodos mais lambe-saco do capitalismo corporativo desde os anos 1980, talvez mais até. A ideia de que um personagem possa ser retrabalhado por diferentes abordagens artísticas ao longo de diferentes obras é uma das molas propulsoras da arte desde seus primórdios. Os dramaturgos gregos e suas peças que versavam sobre tópicos da então religião oficial, apresentadas em festivais sacros. Os pintores da Cristandade europeia com suas milhões de representações diversas de passagens da Bíblia ou dos mesmos contos mitológicos gregos que antes impulsionaram a arte helênica.
Tudo isso faz parte do longo e frutífero diálogo entre gerações expresso por meio de tópicos e temas tradicionais da arte. E nada disso é “propriedade intelectual”. Ulisses, o herói navegador grego, não é uma propriedade intelectual. O Batman, que muitos abobados chamam de “o equivalente moderno de um mito”, é. É uma propriedade da DC Comics, por sua vez subsidiária da Warner Brothers. Mesma coisa o Homem-Aranha, hoje na mão dos estúdios Fox no cinema, mas criado pela Marvel, braço do rato monopolista intergaláctico Disney. E que se esteja encarando com tanta naturalidade a disseminação desse termo é, para mim, um dos sintomas da falência do pensamento crítico quando se fala de arte e entretenimento.
Fãs
Mesmo esses dois termos juntos já acenam para o grande debate ainda não pacificado opondo “alta e baixa cultura”, “arte e entretenimento”, cultura “popular ou erudita” (embora este aqui seja muitas vezes viciado pelo fato de que a noção que muitos têm da cultura “popular” não remete à cultura popular de fato, resultado de processos tradicionais ao longo de gerações, e sim ao aluvião de coisas lançadas a esmo por conglomerados de mídia reciclando a “propriedade intelectual” da vez, querendo ganhar rios de dinheiro com alguma nova e lucrativa “franquia”.
Há um respeitado ramo acadêmico dos estúdios de mídia chamado “estudos de cultura de fãs”. De modo geral, as pesquisas nesse campo abordam algumas dessas mesmas coisas que eu disse mas de um ângulo mais otimista e tendo em vista elementos mais positivos: o fato de que, em volta desses interesses comuns, fãs de cultura pop de modo geral estabelecem uma comunidade identitária apropriando-se daquilo que amam como parte de si e de sua própria expressão pessoal. Não à toa, é gigantesca a subcultura das “fanfics” criadas por fãs de uma determinada história (o que talvez me desperte alguns arrepios quando penso nessa coisa toda são as ressonâncias religiosas que há em alguém se dizer “fanático”, origem do termo fã, por um conjunto de narrativas que são também divididas entre as extraoficiais e as “canônicas”, termo esse vindo sem escalas do campo religioso).
Tenho meus senões não com a abordagem acadêmica, mas com o fenômeno, no momento em que a cultura de fãs: 1) vem sendo o cenário para o desenvolvimento de grupos de toxicidade comprovada. 2) organiza-se eminentemente por uma expressão pessoal por meio do consumo, aceitando abertamente aquilo que ama como um “produto” e manifestando sua relação com aquilo por meio da moeda sonante, não apenas em livros, filmes, games, shows musicais, mas em uma parafernália alternativa oficialmente “licenciada”, de canetas a bonés, de camisetas a bonecos cabeçudos e 3) ampara-se numa relação que parece por vezes se disfarça voluntariamente seu caráter unilateral. Fanfics são expressões pessoais de fãs a personagens e narrativas que não são parte de um patrimônio comum, mas “propriedades” lucrativas de grandes corporações. Talvez por isso seja um tanto cansativo acompanhar o episódio periódico da “guerra cultural” em que nerdolas de meia-idade apaixonados pelos seus gibizinhos de infância reclamam do excesso de “lacração” no que são produções multimilionárias que estão conseguindo publicidade gratuita com a última polêmica. Se a polêmica virou um sinal da publicidade, talvez seja mais produtivo em termos de avanço do debate ser chato e moderado, embora poucos vão ter acesso a suas declarações.
Conteúdo
E eu quase escrevi na última frase “seu conteúdo”, a última dessas palavras adotadas acriticamente no debate cultural para descrever praticamente tudo na cultura digital contemporânea (quem cantou essa pedra, aliás, foi Bill Gates, aquele mesmo, nos anos 1990 ainda, dizendo que onde se poderia ganhar grana na internet seria no “conteúdo”, sendo conteúdo, basicamente, tudo o que está na internet).
Conteúdo é a resenha do influencer, o artigo de opinião acadêmico colocado em uma base de dados, o vídeo de dancinha no TikTok, a live com um especialista, o Flow podcast com seu sorteio aleatório de personalidades interessantes ou “controversas” (eufemismo usado pelos “produtores de conteúdo” para “pessoa idiota que não sabe do que está falando mas que dá declarações que rendem um bom ‘corte”). Nessa geleia geral de indeterminação e indistinção, perde força justamente o pensamento crítico capaz de nos munir de ferramentas para tentar ver por trás dessa armadilha “divertida” do mercado ganhando com seus cliques e com sua atenção.
A água é o recurso do futuro, pelo qual guerras serão travadas. A nossa atenção é um recurso que parece já ter sido apropriado no presente sem que se tenha disparado um único tiro. Precisamos ter mais discernimento na forma como a empregamos.
Ah, e sim, eu sei. Este texto também é “conteúdo”, estou consciente disso.