Em geral, quando alguém busca uma terapia, ou essa pessoa quer entender ou quer mudar algo. Muitas das vezes, a aposta é que, ao entender as suas motivações, alguém também conseguirá mudar.
Ledo engano.
Posso garantir para você, caro leitor, que o meu trabalho como psicanalista seria muito mais fácil se o autoconhecimento fosse suficiente para a produção de mudanças na vida. Claro que poder falar de si mesmo e, a partir daí, construir uma narrativa mais ou menos coerente sobre a própria vida é realmente algo interessante. O problema é que isso, por vezes, é interessante demais.
Explico.
Não são poucos os pacientes que fazem da sua história um romance muito bem escrito, cheio de reviravoltas e múltiplas camadas de significações, metáforas e enredos paralelos complexos que adicionam tensão e drama à narrativa. Nestes quase vinte anos de trabalho clínico, posso dizer que já tive a oportunidade de acompanhar pessoas que contavam a sua história como uma comédia de costumes, um dramalhão digno de novela mexicana, um filme de suspense ou, em muitos casos, como diários íntimos pela primeira vez lidos por outra pessoa.
Com a experiência, entretanto, fui percebendo que, por vezes, quanto mais rebuscado era um relato, mais parecia que o meu paciente se distanciava de um certo núcleo duro de sofrimento, como se as camadas de reflexão e autoconhecimento fossem deixando cada vez mais longe o conflito que realmente faz doer. Com isso não quero dizer, caro leitor, que contar uma história interessante sobre si seja desencorajado ou não valha a pena: pelo contrário, na verdade, é necessário que nós escrevamos uma epopeia particular que faça a vida valer a pena. Em uma época que nos solicita sempre estarmos na posição de responder às demandas do trabalho, da família, da escola, da faculdade, enfim, da vida, ter tempo para contar a sua própria história é um privilégio reservado, infelizmente, a muito poucos.
Em uma cultura que encoraja tanto a autenticidade e que tem como slogan o famigerado imperativo “seja você mesmo”, muito vezes nos vemos às voltas com a ideia de que basta nos conhecermos bem para que possamos ter a vida que tanto almejamos. O efeito colateral dessa perspectiva é que justamente o que nos faz repetir as mesmas escolhas e encenar uma e outra vez o enredo que nos faz sofrer é justamente a certeza que temos de uma certa coerência a respeito de nós mesmos, de quem somos e do que nos motiva.
Em outros termos, o problema é que contar a própria história não basta para mudarmos.
Ao narrarmos a nós mesmos de forma tão complexa, corremos o risco de nos apaixonarmos tanto pela imagem que criamos que acaba sendo muito difícil abrir mão deste reflexo tão bem acabado que projetamos para o mundo. Em poucas palavras, poupando o leitor de todo um desvio conceitual, costumo dizer que nós sofremos, na maior parte das vezes, justamente pela tentativa de sermos sempre iguais a nós mesmos, apaixonados pelo nossos próprios umbigos. Por vezes, inclusive, esquecemos que a nossa paixão pela coerência pode ser violenta com aqueles que nos circundam, reduzindo os outros a meros personagens que desempenham um papel para o qual não foram convidados.
Mudar, em suma, implica suportar o luto da morte de uma versão que fazemos de nós. E isso é duro, trabalhoso e muito, muito doloroso.
Algumas vezes, esse luto de si mesmo é precipitado por contingências da própria vida: a morte de alguém querido que nos faz reavaliar o que queremos e o que somos, uma conversa com um amigo que nos ergue um espelho em que vemos a nossa própria imagem, o apaixonamento por alguém que vê em nós aquilo que ninguém havia visto antes… Enfim, são muitas as chances que temos de prestarmos contas com o nosso passado e, entre multiplicações e divisões, seguirmos adiante deixando para trás um resto inconciliável que por tanto tempo carregamos conosco.
Mas, infelizmente, nem sempre a vida nos oferece tais possibilidades.
E é aí onde entra o trabalho terapêutico, pelo menos de uma terapia que realmente busque produzir efeitos concretos na vida de alguém, e não apenas adaptar o indivíduo às demandas da cultura ou soterrá-lo sob os escombros do autoengano.
Em uma terapia bem orientada, se espera que alguém não somente conte a sua vida em detalhes e pense sobre si, mas também que possa reviver, junto ao seu terapeuta, os conflitos que talvez nem mesmo sabia que existiam. E isso implica que você poderá sentir raiva, ódio, amor, paixão ou até mesmo pena de seu terapeuta.
Mas não se preocupe: se você estiver sendo tratado por alguém com a experiência e o estudo necessários, você poderá trabalhar junto a ele estes sentimentos e, com uma diligente e cuidadosa companhia, poderá se despedir daquela imagem de você que é tão apaixonante, mas que também faz você sofrer tanto.