Tenho certeza que o leitor já passou por alguma dessas situações.
Você tem uma consulta marcada com um médico, olha o clima, se estiver chovendo pede um Uber para não ter que achar lugar para estacionar o carro, come alguma coisa rápida antes de sair de casa para não ficar de estômago vazio, chega no consultório com cinco ou dez minutos de antecedência, só para ser informado que “infelizmente o doutor está atrasado uma meia hora”.
Ou talvez você tenha marcado de receber seus amigos em casa às oito da noite. O pessoal vai chegando dentro daquele prazo esperado, entre oito e oito e meia, talvez até nove, mas aí todos começam a ficar com fome e pensam em pedir alguma coisa. Só que uma amiga ainda não chegou. Devemos escrever pra ela, perguntando qual o sabor preferido da pizza? Ou isso seria invasivo? Será que ela não vai se sentir pressionada? Mas estamos todos com fome e já passou das nove e meia, uma hora e tanto a mais do horário que havíamos marcado…
Fato é que o atraso já faz tanto parte da nossa rotina que até já o prevemos: dizemos para aquele conhecido famoso por sempre chegar atrasado que o compromisso é meia hora antes, já contando que ele não vai chegar no horário. E, mesmo assim, ele atrasa um tanto a mais.
Entendo que em algumas áreas, como a da saúde, às vezes alguns pacientes precisam mesmo de mais tempo, o que acaba comprometendo a agenda pelo resto do dia. Enfim, não podemos ser mais fiéis ao relógio do que ao sofrimento de quem nos procura. Mesmo assim, em quase vinte anos de clínica, acho que consigo contar nos dedos de uma mão a quantidade de vezes que deixei um paciente esperando muito tempo.
Inclusive, tenho o hábito de enviar uma mensagem caso eu corra o risco de me atrasar. Claro que isso não compensa pelo tempo a mais, mas pelo menos sinto que estou sendo cuidadoso com aquele com quem fiz um pacto. Sim, um pacto. Afinal, quando combinamos um horário com alguém, estamos dando a nossa palavra. É o que chamamos de um ato de fala performativo, que tem efeitos práticos na vida. É uma promessa: estarei em tal lugar, a tal hora.
E, enfim, vivemos em tempos em que a palavra parece cada vez menos valorizada, o que deveria nos preocupar.
Vale pensar que esta questão do atraso, como tudo o que passa pela experiência humana, tem um aspecto individual e outro social.
Do ponto de vista singular, são muitas as explicações para os atrasos. Podemos estar falando de alguém que sempre faz questão de ser lembrado, como aquela nossa conhecida da pizza de que falei há pouco: por não ter chegado no horário, ela vai ser tema de conversa. Nestes casos, atrasar-se é uma forma de fazer falta.
Há também aqueles que supõem que podem estar preparados para qualquer imprevisto, então acabam se demorando para sair de casa porque têm que estar com o casaco certo, com a mochila exatamente do tamanho das necessidades, checam quatro ou cinco vezes o gás do fogão, e assim vai. Para estes, todo acaso é um perigo muito grande, então acabam se atrasando porque nunca encontram o cenário perfeito. Este pode ser o caso do médico meia hora atrasado, que talvez precise que todos os prontuários estejam preenchidos e que o consultório esteja na temperatura exata.
Mas tem me feito questão o quanto os atrasos têm se intensificado após a pandemia. Aí entramos no aspecto social mais amplo deste ponto.
Tenho uma hipótese para isso: como durante a pandemia os mais sensatos entre nós ficaram em casa, isso também acabou com o tempo de deslocamento ao qual estávamos acostumados. Como se a pandemia tivesse mudado a nossa relação com o tempo.
Estávamos tão habituados a sair de uma reunião e entrar em outra com um clique que nos esquecemos que no mundo físico é preciso percorrer uma distância para estar em outro lugar. Mais ainda: essa distância é importante. Ir de um lugar para outro suspende o imperativo da produtividade, a obrigação do fazer. E também nos abre para o inusitado: um encontro com um amigo na esquina, uma música que há tempos não ouvíamos no rádio, uma parada estratégica para um doce numa confeitaria que tínhamos esquecido…
Também não foram poucos os que falavam que nunca haviam trabalhado tanto quanto na pandemia. As demandas se amontoaram, as mensagens passaram a vir de forma maciça. Paradoxalmente, mesmo dentro de casa, passamos a viver em velocidade 2x. Só que nós mantivemos este ritmo mesmo depois da pandemia passar. Como de costume, o capitalismo se adaptou e venceu. Neste sentido, os atrasos são uma forma de dizer “não” para este excesso de demanda.
Quando nos atrasamos, também estamos dizendo para nós mesmos que não estamos dando conta de fazer tudo o que nos é pedido, de estarmos em todos os compromissos que lotam a nossa agenda.
Entretanto, na dúvida, não custa sair uns dez ou quinze minutos antes – até mesmo rebelar-se contra o sistema pode ser feito com mais calma.
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