Nas caixas que a gente leva consigo, dedicar-se a afazeres e a uma determinada profissão, está, na prateleira chamada vida, de nós mulheres, bem à frente, muitas vezes, dos postos de saúde, saúde mental e de bem-estar.
Preciso ser alguém. Tu precisa ser alguém. E esse alguém não está atrelado a existir, mas a ter uma profissão. Você precisa ter uma profissão, uma função, uma atividade definida socialmente.
Se entender na vida passa por criar, abrir, se definir por esta caixa, a caixa do trabalho, da atividade especializada dentro da sociedade, que, etimologicamente falando, deriva do latim “professio, onis” com o sentido de professar, de ensinar, de ação de declarar. Uma angústia/exigência cultural, uma imposição social, uma necessidade/urgência de independência, uma sobrevivência. Qualquer justificativa serve.
Mas ela precisa ser uma só?
Capoeirista, estrategista, mãe, pescadora, guerreira, caçadora, agricultora e líder. Motorista, poetisa, atriz, cantora, mãe solo, bailarina, escritora, cozinheira, jornalista, condutora de bondes, roteirista e prostituta. Compositora, enfermeira, musicista, assistente social, mãe e cantora. Professora, filósofa, militante, escritora, candidata a vice-presidência dos Estados Unidos e pesquisadora. Escritora, diretora e criadora da escola mista para meninos e meninas, professora, militante e pesquisadora[1].
As profissões acima, alinhadas entre vírgulas e por pontos finais separadas são de mulheres, mulheres pretas, mulheres pretas empreendedoras que não cabiam em uma, mas em muitas caixas.
Mulheres que revolucionaram e enfrentaram todos os pregos, felpas, tábuas podres e quebradas das suas prateleiras.
Mulheres que declararam e que ensinavam, que em ato e atividade diária, ao mundo, ofereciam novos horizontes.
E aqui não só exalto, louvo e aplaudo Dandara Zumbi, Maya Angelou, Dona Ivone Lara (foto da capa) e Maria Firmina dos Reis, mas também você, que me lê agora e compreende que a nossa complexidade, como seres humanos, contempla uma multiplicidade de afazeres e de atividades, que a simples designação de um único determinado trabalho em sociedade não contempla, não preenche.
Porque já é tempo de exaltar e escrever sobre todas as virtudes e todas as glórias que compreendem o empreendedorismo feminino e todo o impacto causado pelo empreendimento afrofeminino, porque, de Dandara Zumbi e Maria Firmina dos Reis, o presente apenas nos dá bilhetes espalhados das suas existências em sociedade. Bilhetes porque delas pouco se escreveu sobre.
Escrever é ter a existência posta em palavra, lição que tomei pra vida, depois que Glória Anzaldúa[2], professora, escritora, militante entrou na minha prateleira: “Não deixem que a caneta lhes afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Ponham suas tripas no papel […] eles mentiram, não existe separação entre vida e escrita”.
Não quero florescer sobre os percursos doloridos de uma prateleira, que aqui, em objeto, concretizei toda a complexidade do que é uma vida, mas te trazer um olhar permissivo sobre si, para que amplifique o som das suas ações e passe a se entender como um corpo-mente instrumento capaz de estar em muitas e tantas caixas que você quiser.
É preciso escrever e contar as histórias, as vidas, as suas e as nossas.
[1] Dandara, Ivone Lara (Agência Brasil – Referência feminina no samba, Dona Ivone Lara recebe Ordem do Mérito Cultural), Angela Davis
[2] Anzaldúa, Gloria. A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios. Ed A bolha. 2021. p 59.
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.