Remakes fazem parte da história dos filmes como mídia, e são um testemunho permanente não apenas da capacidade infinita do cinema de canibalizar o ambiente e a história para seus propósitos (sem nenhum demérito nessa declaração, uma vez que o romance como gênero literário também se notabiliza por isso), como da endêmica e permanente tensão entre necessidade de lucro e executivos sem imaginação querendo repetir algo que deu certo. Ainda assim, o fato de continuarem representando uma fatia substancial dos lançamentos do atual cinemão me parece sintoma de algo mais complexo.
A repetição e a releitura são recursos comuns da cultura muito antes de ela se tornar “pop” ou de o cinema ser inventado. Tragédias gregas sobre temas comuns da religiosidade pagã, variações de episódios bíblicos ou mitológicos pintados por vários artistas ao longo do tempo, um mesmo libreto musicado por compositores diferentes etc, etc. Reclamar disso só agora com o cinema seria má vontade, mas tem algo que me deixa intrigado. Por que, nos dias de hoje, com o amplo acesso e a facilidade da “reprodutibilidade técnica”, ainda se usa, no discurso hegemônico do cinema como indústria, a “atualização” geracional como desculpa para as refilmagens que pululam por aí?
REPETIÇÃO E ESPECTROS
Faz sentido que o cinema tenha bebido em boa parte de sua história da repetição e da releitura, porque era o que outras artes faziam, e outras artes assim o faziam não apenas por uma inquietação do artista, mas por motivos práticos: aquilo que fora feito antes permanecia oculto ou desconhecido da maioria do público. Peças de teatro, mesmo as que marcaram época, tinham a característica irrepetível de qualquer evento ao vivo: quem estivesse lá no teatro, na hora, veria, quem não estivesse tinha de contentar-se com os relatos, com a “mediação” de terceiros que de fato viram, para não esquecer as raízes de onde o termo mídia brotou. Quadros estavam expostos em lugares e instituições específicas. Quem não pudesse ir até lá, algo que, estatisticamente muito poucos poderiam fazer desde o florescimento do “turismo cultural” como um subproduto da modernidade, deveria se contentar com um desenho de segunda mão num jornal ou panfleto. Em encenações operísticas e musicais, mesmo que a partitura fosse comercialmente editada – e, portanto, permanecesse, a inteireza da execução, a cenografia, as nuances de interpretação, eram restritas àquele momento no tempo.
O cinema muda um pouco esse cenário porque é uma arte que eterniza uma performance no tempo – ou, como define Derrida, que fixa uma imagem “espectral do passado, espectral aqui usado no sentido fantasmagórico mesmo do termo, o de fantasmas de outra época retornando para clamar por vingança, como o pai de Hamlet (um dos motes usados por Derrida em sua análise). Ainda assim, a disseminação do cinema como arte de consumo também dependia de condições físicas um tanto atribuladas. O filme deveria ser copiado em rolos altamente inflamáveis, transportado, rearmazenado, exibido em algumas cidades a cada vez, depois arquivado nos estúdios que os produziam – um processo tão caro e laborioso que raros seriam aqueles em condições de ter uma cópia de um filme para seu uso pessoal. Logo, havia a interessante contradição de uma arte que havia conseguido fixar em suporte físico o conjunto de uma performance artística, mas o acesso do público a ela ainda seguia a lógica dos espetáculos ao vivo: se o filme não pudesse ser assistido em um determinado cinema em um determinado local e em um determinado horário, seu impacto só podia ser avaliado pelos depoimentos de terceiros.
A TV embaralha um pouco as cartas e oferece novas possibilidades de previsibilidade, mas continua obedecendo à mesma dinâmica: assista no horário de exibição tal ou se conforme com todo mundo comentando no dia seguinte (foi um pouco assim até minha adolescência, diga-se de passagem, vivida nos anos 1980 em uma cidade de interior com um único cinema em que um filme ficava em cartaz uma semana, duas se fizesse sucesso, e depois o recreio do colégio na segunda-feira era dominado pelas discussões sobre o que havia passado no Supercine no sábado. Vídeocassete era um produto caro).
Fazia sentido, portanto, que no intervalo de 20 a 30 anos se reempacotasse uma narrativa para um novo formato visando a um amplo novo público que não havia tido antes acesso ao original, ou ao anterior que já era uma refilmagem.
PROPÓSITO
O que me leva à minha inquietação do início. Seria necessário esse mesmo açodamento hoje, quando já passamos por três gerações tecnológicas de “home video”, quando se pode ver muita coisa no YouTube e em vários serviços de streaming, ou comprar em sites de venda ou baixar na rede, para quem consegue fazer isso sem descer um Baidu junto, vale a pena ainda, dizia eu, refilmar as mesmas histórias? Ou será que o que mantém o público distante dos clássicos hoje não é nada mais do que a pura e simples preguiça que parece ser a tônica no mundo da informação hiperacessível em que vivemos?
Note que há diferenças. O caso de Bad Lieutenant, por exemplo, é um deles. Um filme de um artista da forma, Abel Ferrara, refilmado por outro artista de forma, Werner Herzog, situado em uma cidade diferente e em um contexto que renova a abordagem, oferecendo uma rara oportunidade de dois mestres do campo apresentarem sua visão sobre o mesmo tema, pesando cada um a mão nas idiossincrasias que formam seu estilo. É algo mais próximo da longa cadeia histórica em que um artista dá sua versão para um mesmo mote.
Há também os casos em que artistas respeitados resolvem, por “ene” circunstâncias, fazer um remake do próprio trabalho. Um dos grandes filmes dos anos 1990, Fogo contra Fogo, de Michael Mann, aperfeiçoava para o cinema um roteiro que o próprio Mann havia filmado sete anos antes como um telefilme, Aconteceu em Los Angeles, com menos orçamento e câmeras e cinematografia mais precárias. Violência Gratuita, filme austríaco com o qual Michael Haneke chocou o mundo em 1997, seria refilmado praticamente cena por cena pelo mesmo diretor uma década depois, ambientado nos EUA. Mas esses exemplos são também movidos por impulsos diferentes. Inusitados, mas compreensíveis. É a vontade de um artista de refazer uma de suas obras tentando refinar um potencial não atingido por questões várias, inclusive técnicas. Curiosamente, no caso de Haneke, parecia haver também uma vontade de tentar fazer uma nova versão de seu filme, falada em inglês e com um elenco internacional, trilhar caminhos mais amplos e ser vista por mais gente – algo que não deixa de entrar em conflito com a forma como Haneke discute justamente a espetacularização da violência em seu filme.
GOROROBAS
Ainda assim, são dois exemplos de refilmagens peculiares obedecendo a um impulso artístico. No geral, contudo, sejamos honestos: a maioria dos remakes contemporâneos são filmes paridos por um comitê e dirigidos por realizadores que ou são puramente operários artesanais da grande máquina ou sujeitos com uma visão peculiar que foi minuciosamente podada ao longo das várias exibições-teste. Aquilo que transforma o remake é um parente comercial desta outra praga contemporânea, a franquia, ambas nascendo do mesmo impulso de torrar dinheiro para produzir algo parecido quando não igual a alguma outra coisa que tenha feito sucesso ou que apele para um senso deslocado de nostalgia. Por trás disso, o que está em jogo mesmo é a grana, o estúdio querendo faturar de novo, ordenhar a mesma vaca até a inanição cada vez mais próxima.
Alguns argumentam que o remake ainda faria sentido ao atualizar um filme para a sensibilidade contemporânea, o que me parece, com todo o respeito, outra papagaiada. Ben-Hur, Total Recall, Sete Homens e um Destino, Nasce uma Estrela, Ghost in the Shell, Ghostbusters (dois deles), Rebecca, são alguns dos remakes feitos na última década e meia, e todos eles são obras sem personalidade, equivalentes a queijo cheddar vendido em bisnaga: uma gororoba processada de gosto duvidoso e aparência pasteurizada que definitivamente não vai fazer bem para ninguém em nenhum nível a não ser satisfazer uma glutonice momentânea com toques de escapismo.
Bom, talvez seja ESSA a sensibilidade contemporânea, no fim das contas.
P.S.: E, claro, numa nota colateral que não tem nada a ver com o motivo pelo qual escrevi este texto, mas que tem tudo a ver com a semana em que ele está sendo publicado, às vezes você topa UM remake só pra trocar a programação e se livrar da bomba que está passando no momento.
Nesse caso, acho bastante válido.