Sabe aquela sua tia que acredita em tudo o que lê na internet? Ou o seu vizinho que repassa fake news no grupo de WhatsApp do condomínio? Ou aquele ex-colega de faculdade que tira foto de óculos escuros dentro do carro e manda para você um link duvidoso sobre as urnas eletrônicas?
Então, quero te ajudar a entender essas pessoas, caro leitor.
Até porque imagino que você, assim como eu, já se perguntou sobre como pode alguém que até então você tinha em tão boa conta simplesmente se deixar levar pelas notícias falsas e passar a acreditar em coisas como mamadeira de piroca, kit gay, extração de nióbio, globalismo, ameaça comunista (quem me dera, aliás), e assim vai. Como pode aquele seu tio amado, que sempre foi tão gentil e jogava futebol com você, do nada passar a acreditar em qualquer cascata que recebe no WhatsApp? E aquele seu sobrinho tão amado, tão querido, que agora aparece no seu feed de Instagram fazendo sinal de arminha com a mão em uma publicação com a hashtag #mito2022?
Pois bem, talvez a psicanálise tenha algo para dizer sobre isso. Ou assim espero, pelo menos.
Um primeiro ponto a ser levado em consideração é o seguinte: apesar do que diz o senso comum – e também algumas teoria psicológicas – não existe separação entre ideias e afetos. Ou seja, nossas ideias, nossas concepções, nossa visão de mundo, tudo isso é carregado de afeto, de emoção. Isso é bem fácil de entender: tente imaginar, leitor, o momento exato em que você viu o rosto da sua filha recém-nascida, aquela primeira vez em que você a pegou no colo. Imagino que esta lembrança tenha trazido consigo uma avalanche de sentimentos, não? Vamos para o oposto: agora tente recordar uma cena de infância em que você se sentiu sozinho, talvez aquele dia em que seu pai se atrasou para lhe buscar na escola e você achou que ele tinha esquecido de você. Um aperto no peito? Talvez até uma certa sensação de vazio na boca do estômago?
Então, é disso que estou falando: as palavras são sempre carregadas de afeto, cada uma contando uma história única, singular, à qual só você tem acesso.
À medida que vamos vivendo, também vamos aumentando o nosso repertório íntimo de palavras, lembranças e opiniões que vão mapeando a geografia dos nossos afetos, delimitando fronteiras sensíveis entre a esperança e o desespero, recortando as margens de um profundamente solitário oceano de sentimentos.
Ainda que este repertório tenha sido feito para ser executado em performance solo, nós não estamos sozinhos no mundo. Mal ou bem, nós temos que aprender a ignorar a nossa partitura íntima e ceder a um ritmo compartilhado, temos que deixar as nossas convicções um pouco de lado para podermos fazer laço com os outros. A não ser, e aqui é o ponto a que eu queria chegar, a não ser que nós encontremos outros que partilham de uma boa parte do mesmo dicionário afetivo.
Parece que é isso que está acontecendo em nosso país nos últimos anos. Para ser justo, não só no Brasil, mas no mundo todo.
Quando vemos um presidente da república mentindo abertamente em rede nacional, acabamos por nos perguntar: mas será que ele acredita nisso que está falando? Será mesmo que ele supõe que haja um exército de comunistas à espreita para tomar o poder? Será possível que ele acredite que não imitou jocosamente um paciente de COVID com falta de ar, ainda que baste fazer uma busca no Youtube para termos provas concretas de que isso aconteceu?
Não sei responder a essas perguntas, sinceramente. Aí, estou no mesmo barco de estupefatos que você, leitor.
Mas talvez possamos pensar essas questões a partir do que eu falava logo há pouco: se as ideias – e as crenças, portanto – são carregadas de afeto, então pode ser uma boa ideia tentarmos encontrar o caminho afetivo ao qual nos levam afirmações grotescas como as proferidas pelo presidente e seus… seguidores? Apoiadores? Enfim, seus eleitores.
Ora, parece haver um certo denominador comum que atravessa boa parte dessas pessoas: um ressentimento implícito – mas nem tanto – com relação à perda de um lugar de privilégio que parecia garantido.
Afinal, temos visto, nas últimas décadas, um profundo e necessário questionamento a respeito da narrativa hegemônica que entende como personagem principal da história o homem, branco e hétero. Governos de esquerda têm sido sensíveis às vozes daqueles que há tanto tempo ocuparam o lugar de coadjuvantes, quando muito, no roteiro da história da humanidade. E esta escuta busca trazer consigo medidas essenciais de reparação histórica, como a política de cotas nas universidades e outras formas de ações afirmativas – medidas que, vejamos bem, fragilizam o lugar de privilégio destes que supunham que o mundo tinha sido feito para eles.
Ou seja, me parece que todo o arsenal de fake news e discurso de ódio contra as minorias talvez nada mais seja do que um convulsivo lamento autoritário contra um mundo que parece disposto, pelo menos localmente, a refletir sobre as práticas históricas de violência – escravidão, racismo, homofobia… – que marginalizam setores da população em detrimento de outros, especialmente no que se refere ao reconhecimento social e ao acesso aos serviços essenciais como educação e saúde.
Talvez aquele seu tio que divulga uma notícia falsa de que “os comunistas vão roubar a sua casa se Lula for eleito” acredite mesmo no que está compartilhando. Uma crença não somente racional, mas sobretudo afetiva, na medida em que ele se vê ameaçado em seu lugar de privilégio, sentindo-se acuado frente a um discurso que prega a igualdade e equidade. Aquela amiga que agora diz que defende “a família e os valores cristãos” talvez não passe de mais uma ressentida por ver a empregada doméstica tendo acesso a bens de consumo que ela considerava serem exclusivos seus, vendo-se assim no lugar que lhe cabe, na verdade: como apenas mais uma cidadã em um mundo plural e diverso.