Recentemente fui entrevistado pela revista Veja sobre a popularização da psicanálise entre os jovens. Era para a matéria ser bem mais longa, mas sofreu um corte editorial muito significativo e acabou, infelizmente, veiculando ideias um tanto rasas.
A hipótese da revista acabou sendo que tantos jovens têm se interessado pela psicanálise porque a pandemia teria feito com que eles buscassem mais autoconhecimento, queriam entender melhor a si mesmos.
Não que isso não seja verdade, mas é uma justificativa bastante simplória, mesmo porque este interesse dos jovens – e não só deles – pela psicanálise já vinha crescendo desde antes da pandemia.
Claro que o período de isolamento fez com que alguns de nós tivéssemos mais tempo para olharmos para nossas vidas e nosso cotidiano. O tédio é um dos maiores amigos da curiosidade. Entre os jovens, então, isso foi ainda mais acentuado: tantos e tantos deles acabaram ficando sem os encontros com os amigos, sem a circulação pela escola e sem as “resenhas” com a galera.
Durante a pandemia, era comum escutar de pacientes adolescentes o quanto a vida tinha se tornado repetitiva e sem graça por não poderem sair de casa: os dias pareciam sempre os mesmos, como se a narrativa não avançasse. Entre aqueles um pouco mais velhos, havia o pesar de a pandemia ter chegado justamente quando estavam começando a faculdade.
Para estes, em especial, o golpe foi muito duro. A entrada na universidade costuma ser um momento de passagem importante, um encontro com uma forma de pensar diferente daquela da família e dos amigos de infância e adolescência. É uma abertura para o mundo. Pois bem, este mundo tão vasto ficou pequeno, reduzido às poucas polegadas dos celulares e dos notebooks.
Houve, claro, um aumento significativo nos diagnósticos de ansiedade e depressão, como é de se esperar em qualquer momento histórico em que o laço social se vê fragilizado. Curiosamente, dados recentes não reforçam a hipótese que se tinha de que, após a COVID-19, viveríamos uma “pandemia de saúde mental”. Ou seja: esperava-se que o rebote do tempo de distanciamento cobrasse um preço caro: não aconteceu.
Creio ainda ser difícil explicar o porquê disso, mas arrisco a dizer que talvez tenhamos menosprezado a capacidade do psiquismo humano de absorver e dar contorno a eventos traumáticos. Minha outra hipótese é que todo este tempo de exposição à incerteza e o convívio cotidiano com a morte acabaram não se traduzindo em quadros patológicos evidentes, mas restaram como um certo núcleo traumático com o qual conviveremos pelo resto da vida. Infelizmente, acredito que seremos atormentados por flashes daquela época, como traumatizados de guerra que volta e meia sonham a granada que estourou. Ou que não estourou e ainda se fica à espera da explosão.
Fazia sentido que tantas pessoas buscassem terapia durante a pandemia, especialmente pela facilidade do tratamento online. Mas isso não explica duas coisas. A primeira: por que tantos jovens se interessaram por um tratamento psíquico? A segunda: por que a escolha pela psicanálise, entre tantas abordagens existentes?
Difícil responder a estas questões, então peço que meu leitor me acompanhe por algumas respostas que são pouco mais do que especulações a partir do meu próprio trabalho clínico.
Creio que um fator da popularização de terapia entre jovens tenha relação com o efeito conjunto das redes sociais e da onda neomística que há algum tempo vem se apresentando.
Os jovens são o público-alvo privilegiado das redes sociais, especialmente as gerações que já nasceram dentro da internet, para quem ficar online nunca precisou ser um ato voluntário. Assim, é essa faixa de público que mais ficou exposta aos famosos “terapeutas influencers”, sejam os dançarinos de TikTok, sejam os expoentes renomados que tiveram seu trabalho visibilizado para um público mais amplo, como a Maria Homem, a Vera Iaconelli e o Christian Dunker.
Apesar de todas as minhas críticas, especialmente aos “psicanalistas” (as aspas são propositais) de TikTok, acredito que esta popularização mercantil da psicanálise tenha tido o efeito colateral interessante de permitir que tantos e tantos jovens em sofrimento pudessem buscar ajuda. Com sorte, eles caíam nas mãos de um profissional capacitado e crítico, e não de alguém que gasta mais tempo com a câmera frontal apontada pra si do que com a cabeça abaixada nos livros.
Aliado a isso, ainda temos este crescente interesse das gerações mais novas pelas mais variadas formas de conhecimento de si, como o tarot, a astrologia e a famigerada constelação familiar. Mesmo que eu seja um crítico arguto destas práticas, não posso negar que este interesse por si mesmo tenha seus efeitos, uma vez que elas são todas, por falta de palavra melhor, modalidades de hermenêutica de si. Em termos menos rebuscados: são formas de alguém ler a sua própria subjetividade.
Vamos agora para a segunda pergunta: dentre tantas formas de terapia, por que os jovens acabaram buscando tanto a psicanálise, e não a terapia cognitivo-comportamental, por exemplo?
Aí novamente estamos em um terreno bastante insólito, em que podemos fazer ainda somente conjecturas. Mas eu arriscaria a dizer que o principal aspecto a ser levado em conta aqui é que se trata de um movimento que antecede à pandemia: cada vez mais vemos jovens que buscam outras formas de estar no mundo que não seja ao modo do capitalismo tardio, que veem seus pais e familiares dedicando todo seu tempo ao trabalho e às obrigações e não querem seguir por este mesmo caminho.
Se para muitos jovens o período de isolamento social foi entediante, não há como negarmos que a maior parte de nós, adultos, nos vimos ainda mais imersos em trabalho e demandas. Acreditávamos que trabalhar de casa seria mais confortável, mas vivenciamos justamente o contrário: quando não temos os intervalos de deslocamento, quando tudo se tornou imediato, quando saíamos de uma reunião e entrávamos em outra com um clique, o mundo se tornou ainda mais veloz e exigente. Afora a louça pra lavar, as camas para arrumar, o chão para varrer…
Os jovens viram seus pais e seus irmãos mais velhos enlouquecidos tentando dar conta de uma rotina cada mais insana, uma corda-bamba em que nos equilibrávamos entre o nosso medo de ficarmos doentes e a nossa esperança de que tudo logo acabasse.
É aí que entra a psicanálise. Por ser uma prática clínica que nunca deixou de levar em conta a dimensão social do sofrimento, nós psicanalistas sabemos bem que esta lógica de produtividade e rapidez só ficou ainda mais aguda durante a pandemia. Com isso, também ficaram mais evidentes os efeitos do discurso neoliberal na produção de quadros psicopatológicos. Seria estranho e curioso se nós não tivéssemos tido algum sintoma de ansiedade e depressão: em um contexto em que o mundo está desabando, patológico mesmo é não ser afetado por nada.
Aderentes a uma disciplina de contrafluxo, os psicanalistas sempre se dedicaram à escuta atenta e, principalmente, lenta dos pacientes. Nós partimos da hipótese de que é impossível alguém falar de si nos termos do capital e do imperativo da produtividade. Quando alguém busca um psicanalista, está se dirigindo a uma pessoa que fica em silêncio, algo tão raro nos tempos de hoje. E isso acontece mesmo que seja na prática online. E não digo silêncio apenas no que diz respeito a não falar, mas também é esperado que um psicanalista não reproduza o excessivamente estridente discurso neoliberal. O silêncio de um psicanalista é o convite a que alguém possa, no seu tempo, desviar a atenção da lógica de produtividade e de aperfeiçoamento de si e buscar em sua própria história os seus interesses e motivações. Enfim, seu desejo.
Creio que estes pontos – a influência das redes sociais, a nova onda mística e a resistência à lógica do capital – nos ajudam a lançar algumas luzes sobre o aumento de interesse dos jovens na psicanálise nos últimos tempos.
Tomara que, com isso, possamos construir um futuro menos adverso e talvez até um tanto mais silencioso.