Se tem uma coisa que os meus anos de trabalho com a psicanálise me ensinaram é que a coragem é uma virtude daqueles que suportam não ser amados o tempo todo.
Ainda antes de nascermos, somos imaginados pelos nossos pais, viramos personagens de uma história que nos é transmitida como um ponto de partida, mas que, se tivermos coragem, não será o roteiro final de nossa existência. Este lugar desde onde começar é essencial, afinal, não somos apenas seres biológicos, mas também já nascemos dentre de um contexto cultural que espera algo de nós e que é habitado por narrativas que nos dão indícios de por onde andam os ideais sociais.
Alguns pais esperam que seus filhos sejam bem-sucedidos na profissão que, por algum motivo, eles próprios não puderam escolher, por exemplo. Já outros veem os filhos como aqueles que poderão finalmente cursar o ensino superior e serem os primeiros da família a terem um diploma universitário. Também há aqueles pais que tomam os filhos quase como seus funcionários, tratando de dar-lhes as melhores condições de vida para, décadas depois, poderem cobrar-lhes cuidados.
Enfim, há tantas narrativas antecipatórias que os pais fazem de seus filhos quanto existem diferentes famílias no mundo. Entretanto, há algo aí de invariável: os filhos entendem estes desejos e anseios dos pais como uma demanda a ser cumprida, ou pelo menos levada em consideração. Mesmo a filha que rompe com os padrões familiares e escolhe, por exemplo, cursar artes plásticas e não engenharia acaba fazendo um movimento de ruptura a partir da narrativa que lhe foi desejada. Nossa história começa, inelutavelmente, antes de nós, várias gerações antes do nosso nascimento. Somos o efeito das escolhas feitas pelos antepassados, mesmo – e talvez inclusive – das más escolhas. Mas nós temos a chance de, com coragem, reescrevermos esse roteiro que nos foi dado e, assim, assumir uma posição mais autoral de nossas próprias vidas.
O ponto é que, apesar de muitas vezes essa história antecipada nos parecer compulsória ou restritiva, ainda assim ela é necessária: nós nascemos desamparados no mundo, necessitando do outro mesmo para a mais básica de nossas necessidades, inclusive aquelas necessidades que não são só biológicas, mas sociais. Queiramos ou não, o futuro que nos foi antecipado pelos nossos pais nos pertence da mesma forma que os remos de um barco no meio de uma tempestade: talvez não seja o que queríamos, mas é o que temos para nos salvar do desaparecimento.
O que fui testemunhando ao longo de quase duas décadas de consultório é que muitos tomam essa história como um destino selado, retornando a ela tantas e tantas vezes ao longo da vida, mesmo que isso não faça mais sentido. Mas por que, então, muitos acabam achando difícil, por vezes impossível, se distanciar disso que foi esperado de si?
Ora, acredito que um dos fatores em jogo aí é que nós amamos sermos amados. Para alguns de nós, nos interessa inclusive mais sermos amados do que construirmos uma vida interessante e condizente com o nosso desejo. Se levarmos em conta que a nossa forma de amar depende muito do modo como fomos amados e amamos os nossos pais, então acredito que o leitor já comece a perceber a complicação em que entramos aqui. Parece que fazemos uma suposição de que somente seremos amados se cumprirmos com o que esperam de nós. Em um primeiro momento, sentimos que precisamos dar conta dessa narrativa que nos foi transmitida pelos nossos pais, mas, mais adiante, também temos que nos haver com o que as expectativas dos amigos, dos colegas de trabalho, dos parceiros afetivos, enfim, com o que a cultura como um todo nos demanda. Em outros termos: como não nos resta outra forma de estar no mundo a não ser lidando com as suas demandas, fazemos a hipótese de que a obediência ao que esperam de nós seja uma garantia de amor.
Mas é muito fácil confundir obediência com coragem. No espectro social, vimos isso nos recentes “atos cívicos” no Dia da Independência do Brasil, durante aquela esquete mal interpretada de patriotismo encenada pelo presidente e seus seguidores. Quando perguntados sobre o motivo por estarem nas ruas, muitos respondiam que estavam “cumprindo seu dever”, como quem faz uma gracinha e espera ver dos pais um sorriso de satisfação.
O mesmo ocorre também no plano íntimo de nossas pequenas vidas. Alguns pacientes chegam ao meu consultório com a “vida ganha”, mas profundamente insatisfeitos e tristes. Aos poucos, percebe-se que se trata de pessoas que viveram uma vida bem adequada e de acordo com o que supunham que era esperado de si, sendo vistos pelos outros como corajosos e determinados. Entretanto, quando se coloca uma lupa sobre as decisões feitas até então, começa-se a perceber que aquilo que é visto como obstinação por muitas vezes não passou de uma busca incessante por ser amado e por cumprir o que era esperado de si. Uma vida toda levada adiante no intuito de não decepcionar ninguém, de sempre ser bem-quisto. Não poucas vezes, também, ficamos tão certos de que os outros nos demandam tanto justamente porque fazemos a hipótese de que, ao sermos tão necessários, somos amados e ocupamos um lugar especial. Pode ser bastante libertador percebermos que não somos assim tão importantes, que talvez os outros não vão se decepcionar tanto caso tomemos um rumo diferente do que esperam.
Afinal, somos corajosos justamente quando podemos dizer “não” ao que nos é demandado, quando questionamos a nossa posição de servidão voluntária em troca de amor. Isso não implica necessariamente não seguir por aquele caminho que nos foi apontado, mas sim que este caminho possa ser questionado, duvidado, experienciado com pelo menos algum atrito que diga de nossa autoria.
Suportar que talvez os outros não esperem assim tanto de nós, que não somos tão amados, que não estamos o tempo todo sendo vistos e avaliados pode ser uma boa forma de nos perguntarmos pelo nosso desejo, mesmo que isso implique ter que lidar com o desamparo que é próprio àqueles que se veem profundamente solitários frente às suas escolhas.