Republicação*
No dia do segundo turno das eleições presidenciais, Michelle Bolsonaro votou vestida com uma camiseta com o nome e a bandeira de Israel estampados. Toda vez que o bolsonarismo se apropria de um símbolo judaico, recebo dezenas de mensagens. Aliás, na qualidade de único amigo judeu de muita gente, recebo muitos pedidos de explicações sobre o assunto. Mas, aqui, resolvi ir além das rápidas mensagens de WhatsApp e falar com mais calma sobre por que a atual primeira-dama votou com essa camiseta.
Damares gritando que meninas usam rosa e meninos usam azul? Tinha uma bandeira de Israel atrás dela. Manifestação golpista em Brasília? Tem lá uma bandeira de Israel. Pediu para fechar o STF? Ora, tem uma bandeira de Israel lá também. Novo ministro nomeado? Tem um candelabro de sete braços, a menorá, aparecendo atrás. A cada aparição dessas, judeus (que pertencem ao povo judeu em todo mundo) e israelenses (cidadãos do Estado de Israel) se perguntam: por que diabos tem uma bandeira de Israel lá?
E eu me pergunto: será que eu não tenho problemas suficientes para, além de tudo, ter que explicar por que diabos tem uma bandeira de Israel lá? Até mesmo porque sinalizam causas que são tidas como absurdas por boa parte dos judeus e israelenses. Como diz o historiador Iair Grinschpun:
Há uma apropriação indevida de símbolos do judaísmo para tentar legitimar suas pautas reacionárias. Desconhecem ou ignoram deliberadamente que Israel é um país extremamente avançado em questões sociais como igualdade de gênero, aborto legalizado, ativo movimento LGBTQIA+ com todos os direitos reconhecidos, entre tantos outros.”
O historiador Michel Gherman fala que o bolsonarismo criou uma espécie de “judeu imaginário”, uma representação de Israel e dos judeus que não tem amparo na realidade e que existe apenas na imaginação dos bolsonaristas. Quando a bandeira de Israel ou um símbolo judaico aparece, ele tem pouco a ver com os judeus e o Estado de Israel e muito a ver com uma ficção criada pelos adeptos daquele movimento.
A primeira explicação para o sequestro e apropriação da bandeira israelense é política. Se a bandeira palestina aparece em muitas manifestações de esquerda e o apoio à Palestina é visto como uma questão importante, a resposta óbvia de quem se coloca como o oposto a tudo que a esquerda faz é empunhar a bandeira israelense. Daí, palestinos e israelenses deixam de ser pessoas reais para se tornarem símbolos de um campo e outro, o que é algo completamente deslocado da realidade, pois há quem vote em um ou em outro nos dois povos.
A presença da bandeira com a estrela de David se torna ainda mais curiosa quando observamos as inúmeras “coincidências” existentes entre o bolsonarismo e o nazismo. Desde a cópia do slogan (Hitler adorava o “Alemanha acima de tudo”), a normalização do nazismo que marca esse governo que está encerrando, com uma visão de mundo marcada por uma visão reciclada de lixo antissemita, notadamente pelo globalismo e sua conspiração mundial (judaica). Outra “coincidência” foi a explosão de atos e grupos nazistas cujo exemplo mais eloquente talvez sejam os braços levantados em saudação nazista em Santa Catarina.
Isso sem contar que na salada que é o bolsonarismo está o integralismo, o fascismo brasileiro que tinha como lema o nosso conhecido “Deus, Pátria e Família”. Se Gustavo Barroso, o líder mais antissemita daquele movimento chamava os judeus de “carrapatos”, agora os nordestinos são os novos “carrapatos”. (Lembre-se que os integralistas apanharam de judeus e comunistas quando inventaram de marchar no Bom Fim.)
Outro motivo para as bandeiras de Israel entrarem nas referências do bolsonarismo é a imitação de Trump. A extrema direita brasileira copia a norte-americana em muitos aspectos e essa não é diferente. Donald Trump adotou a relação com Israel como um símbolo de política por razões particulares: a popularidade do premiê israelense Benjamin Netanyahu entre os republicanos (ele também se entrosou bem com Bolsonaro, há afinidade ideológica e rolou um clima de bromance entre os dois) e a defesa de Israel como um princípio dos evangélicos.
E daí, o círculo começa a se fechar e chegar à razão pela qual Michelle Bolsonaro vestiu aquela camiseta no dia em que seu marido foi rechaçado pelas urnas. Além dos integralistas e olavistas, o bolsonarismo se sustenta no tripé “boi, bala e bíblia”, ou seja, os ruralistas, a turma das armas e os evangélicos.
O eleitorado evangélico foi um dos setores mais fiéis ao candidato da extrema direita. Sua terceira esposa, Michelle, é evangélica e fazia a interlocução com esse público junto com a ex-ministra Damares Alves e promoveram uma verdadeira “guerra santa” recheada de ameaças e fake news entre o primeiro e o segundo turno das eleições. Para esses crentes, o apoio ao Estado de Israel é parte de um plano divino que somente será cumprido com a volta dos judeus à Terra de Israel e a Jerusalém como requisito para a volta de Jesus Cristo à Terra. Para eles, o Estado Judeu terreno será sucedido por um reinado espiritual cristão de mil anos. Como explica o professor Ilton Gitz:
Os evangélicos é que usam a bandeira. Mas aquela bandeira não representa o estado de Israel moderno. Representa um reino judaico, que seria o precursor da vinda do Messias. Não tem nada a ver com Israel e não tem nada a ver com os judeus.
Assim, quando Michelle Bolsonaro veste esta camisa, está sinalizando seu pertencimento e oferecendo apoio a este grupo específico. O seu afago está dirigido aos evangélicos e está buscando seus votos, até mesmo porque a comunidade judaica brasileira não representa sequer 0,1% da população e é uma comunidade pluralista, que costuma votar em todos os partidos, existindo judeus de centro, de direita e de esquerda. Há até mesmo judeus que apoiam a extrema direita, mesmo com o cheiro incômodo de nazismo que o bolsonarismo exala. Mas os seres humanos são contraditórios e os judeus não são diferentes.
*Texto originalmente publicado em 8 de novembro de 2022
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