O vereador Ramiro Rosário é um entusiasta dos arranha-céus (DOC ZH, 24 e 25/12). Eu não. Para mim o arranha-céu é o elemento mais depredador das chamadas “cidades globais”. Ele faz parte da crise de um modelo urbano marcado pela funcionalização de todo o território, é produto da perda do espaço público em benefícios de interesses setoriais e individuais. O que as cidades fazem com eles é “simplesmente especular com sua tipologia para criar mais rentabilidade especulativa com menor investimento em um entorno que fica depredado e do qual são sugadas suas melhores qualidades, sem dar nada em troca”, diz Josep Maria Montaner em Arquitetura e Política (Editorial Gustavo Gili 2014).
Não nos enganemos: o arranha-céu é a expressão máxima do capitalismo porque recusa as características sociais, humanas, ecológicas e patrimoniais dos lugares onde são construídos. Não basta crescer para o alto, é preciso valorizar a vida social do entorno: a que é produzida pelos arranha-céus é sempre limitada, ele sempre se isola do entorno do bairro, não permite que haja espaços de encontro – quem é que se encontra num saguão ou no elevador?
O arranha-céu só serve para fazer circular as entregas em domicílio, os intercâmbios nunca passam da porta para os entregadores, é o êxtase da tele-entrega. Pior, com suas laterais envidraçadas, é o inferno da climatização artificial porque obrigam os aparelhos de ar-condicionado a estarem permanentemente ligados e com isso, ampliam uma vida insalubre. Com tantos vírus que há hoje no ar, o prédio torna-se uma cidade de gripados.
Não é preciso ir muito longe para criticar os arranha céus: em Camboriú, a primeira reclamação da sua construção foi a produção de sombra na praia produzida pelos prédios que barram a incidência do sol. “As torres da cidade global são emblema negativo das piores características da cidade tardo-racionalista e do capitalismo” diz Montaner. Depois, com os aterramentos para fazer felizes seus moradores, a coisa ficou pior ainda, seja pela sua erosão ou transformação em verdadeiras areia-movediças.
A necessidade de controle sobre os arranha-céus é evidente. Nos EUA, até 1916, sua construção não tinha restrições, mas foi a construção do Equitable Insurance Company Buiding, em Lower Broadway, entre 1913 e 1915, que os americanos se derem conta da necessidade de criação de legislação restritiva para arranha-céus. Ali também o prédio havia criado uma imensa sombra que escureceu as regiões vizinhas, o que levou a divisão em zonas residenciais, comerciais e industriais. Para preservar a luz, bem escasso em Manhattan, a forma dos arranha céus foi regulada, exigindo-se recuo a partir de certa altura do lote para permitir a passagem da luz. Até na cidade dos arranha-céus, o céu NÃO é o limite. Por que aqui não?
O exemplo de Hong Kong é infeliz: a cidade é o solo delirante da tábula rasa do capitalismo, junto com Los Angeles e Singapura, cidades que produziram um modelo de segregação social a partir do seu canto de cisne de um urbanismo tardo-racionalista, que nada mais é do que a reformulação rentável da zonificação das cidades. Esse modelo é responsável pelo crescimento de subúrbios, bairros fechados, abandono dos centros históricos depauperados, que se tornam lugares repletos de ambulantes – qualquer semelhança com o centro de Porto Alegre NÃO é mera coincidência!
O que acontece quando o mercado dita as regras do planejamento urbano é o fim do projeto social e ético de melhoria das condições de habitualidade para os pobres na cidade. Sai a Carta de Atenas que preconiza moradia, trabalho, entretenimento e circulação e entra os interesses do Grande Capital: habitação em urbanização fechada, trabalho em centros terciários, entretenimento e consumo em shoppings centers. O arranha-céu faz parte deste modelo de cidade desconexa, que apaga a história. É que a memória incomoda: se precisa preservar, não dá para demolir. E sem demolir, não dá para construir algo que de mais dinheiro. Não foi exatamente por isso que o Ginásio da Brigada Militar, a casa de Caio Fernando Abreu e tantos outros lugares da memória da capital foram transformados em terra arrasada para atender os interesses da construção civil? Edward Glaeser, nesse sentido, não passa de mais um intelectual de Harvard integrante do mainstream neoliberal. Concordamos com Rosário de que qualquer projeto deve possuir mecanismos de sustentabilidade, mas não será pelo urbanismo dos arranha-céus que isso será feito: ele não considera a multiplicidade de protagonistas, faltam-lhe incluir a dinâmica de outros ambientes, grupos, minorias, mulheres, pontos de vista plurais em sua construção.
Porto Alegre já foi um modelo de desenvolvimento urbano quando havia programas de participação dos cidadãos nas decisões orçamentárias nos anos 90. Foi o neoliberalismo que se implantou na capital a partir da eleição de José Fogaça, que foi responsável pela redução da participação popular nas decisões do planejamento da cidade. Menos cidadãos e mais mercado é o que se vê no modelo de desenvolvimento urbano adotado em Porto Alegre, na parceria com grandes corporações que transformam espaços de lazer em espaços de consumo. Sai o orquidário do Parque Farroupilha e entra uma Praça de Alimentação: não, a cidade não é um shopping center ao ar livre, não é um lugar de “marca” e de totens em estilo hollywoodiano, tudo produto do design e não da história e que produzem o apagamento da memória da capital.
O exemplo dos totens espalhados por empresas como Eletromídia por todo o lugar, de shoppings, metrôs à edifícios, agora chega as paradas de ônibus de Porto Alegre. Elas são um exemplo típico deste urbanismo voltado para o consumo e não para as pessoas. O filósofo Byung Chul Han chama esses recursos de elementos da contemplative life e assim, um lugar que servia para conversas entre estranhos passa a ser um lugar em que não fazemos mais nada para consumirmos imagens. Nessa visão de cidade, até na parada de ônibus precisamos estar ligados a aldeia global. Por quê? Para Han, quanto mais tempo estamos expostos ao fluxo das telas, mais distantes estamos de nossa própria consciência. Quando estamos numa parada de ônibus, exploramos este pequeno microcosmo ao nosso redor e entramos em contato face a face com o Outro que espera o ônibus. Não é incomum iniciar-se uma conversa sobre o tempo e trocamos ideias com quem espera o próximo ônibus.
Botar uma tela na parada de ônibus traz para quem espera o ônibus o mesmo problema dos espanhóis que dedicam metade de seu tempo para estar conectado e 1/3 olhando o celular mais de cem vezes por dia. Esse excesso de exposição à tela é que é trágico, e agora elas chegaram às paradas de ônibus. Que efeitos terão estas telas sobre a fadiga ocular, sobre nossos transtornos de ansiedade, depressão e dependência? Pior, que fim terá a sociabilidade das paradas de ônibus? Essa também é outra forma da tirania tecno liberal, a capitalização em massa do tempo da pessoa que não pode descansar das telas nem numa parada de ônibus. Frente aos apelos de consumo, não nos enganemos: essas tecnologias estão aí para desagregar o indivíduo pelo meio de uma imposição massiva de desejo de consumo mediados por algoritmos a serviço da tirania da comunicação. É o que o filósofo Eric Sandin chama de “siliconização do mundo”, a construção de um modelo de globalização que substitui nosso impulso natural de contato com o semelhante por uma administração digital do mundo.
Agora abrimos mão de nossa liberdade também na parada de ônibus digital. Seu aparecimento é tido como moderno, mas não passa de mais digitalização do espaço público. Em Blade Runner, a imagem do mundo digital apontava um mundo que se perdeu. A parada de ônibus deve ser o que ela é: um lugar de espera onde podemos estar sozinhos com nossos pensamentos ou abertos para ouvir o Outro até o próximo ônibus. Que exista um lugar onde não precisemos de telas seria um alívio.
Deveríamos ser protegidos desses interesses capitalistas por um Estado Social. O problema é que ocorre justamente o contrário, ele se tornou seu principal promotor. Na ausência de um confronto do Estado, o que ocorre quando ele é tomado por interesses neoliberais, são os próprios movimentos sociais que devem lutar para preservação de sua vida comunitária e patrimônio. Onde está o equívoco de Rosário? Na ideia de que, no crescimento da cidade, a direção de prédios importa. Para cima, para os lados? Para mim é uma falsa questão porque entendo que, no crescimento da cidade, o que realmente importa é como combatemos a desigualdade nas relações sociais, de como fazemos uma cidade mais humana. Nunca foi de construção de arranha-céus de que se trata o debate de políticas urbanas, mas de como construímos novas sociabilidades na cidade. Onde Rosário vê prédios, eu vejo pessoas; onde Rosário vê um Plano Diretor dirigido pelos interesses do mercado, eu vejo um Plano Diretor construído com a participação dos cidadãos. Frente ao individualismo e financeirização da cidade prometida pelos arranha-céus, é preciso recuperar na cidade os espaços de cooperação social, gestão de recursos em comum, entre cidadãos e governo, e não entre governo e empresários capitalistas.
Para mim, a retirada dos limites de altura do Plano Diretor do Centro Histórico e do 4º Distrito atentam contra a cidade, são um legado neoliberal que será de difícil superação. O que faltou? Uma agenda do urbanismo do comum para a capital. A proposta, do arquiteto Josep Montaner é descrita na obra Arquitetura e Política: por um urbanismo do comum e ecofeminista (Editora Olhares, 2022). Nessa agenda, o capital deixa de dar a orientação aos políticos, substituídos pelos cidadãos e comunidades que se tornam protagonistas da política urbana. Cabe ao Estado fomentar redes de cooperativas em diversas escalas para decidir e organizar o urbano, a cidade. Concordamos com Rosário de que o urbanismo não pode estar isolado das grandes questões como a do meio ambiente, mas o que sua visão oculta é a necessidade de a política urbana combater a desigualdade. São arranha-céus para ricos, não para pobres. O uso de materiais recicláveis visa ser apenas um elemento de alívio da consciência dos mais ricos. O que é necessário é habitação de caráter social. Se os arranha-céus de Rosário tiverem esse objetivo, estarei de acordo.
Na concepção da urbanização do comum, saem as preocupações políticas para criação de facilidades para os grandes empreendimentos e entram no seu lugar o dever do estado para com a moradia popular, a oferta de tecido básico da cidade para os sem teto, alojamentos de emergências, moradias para classe média ou coabitação (co-housing), incluído moradias com serviços para idosos ou jovens. Cabe ao poder político concentrar-se em quem enfrenta o desafio de acesso a moradia e não quem tem condições de pagar por ela. Por isso, as políticas que visam dar uso social a imóveis subutilizados ou reabilitar casas ou apartamentos para uso social devem ser prioridade dos gestores públicos durante a elaboração do Plano Diretor. A defesa dos arranha-céus afasta os trabalhadores do centro da cidade, e quando isso acontece, a cidade possui cidadãos sem direitos ao seu bairro e perde parte de sua representatividade. O que significa incentivar gestão comunitárias e auto-organizadas de equipamentos, cessão de edifícios e terrenos onde os moradores organizam atividades de bairro e hortas urbanas. Nos Estados Unidos, há cerca de um milhão de habitações em cooperativas e a Constituição da Bolívia reconheceu a propriedade comunal. Devemos lutar contra a gentrificação dos bairros por parte daqueles que detém o capital e afetam a decisão dos políticos.
Não compartilhamos do otimismo urbano e tecnológico de Rosário. Quantos aos novos materiais, você confiaria em um arranha céu de vigas de madeira? Eu não. O complexo 4D é ainda mais assustador: com valor de vendas estimado em 300 milhões de reais, passa longe do interesse social da propriedade. Pior: sua forma lembra os exemplares da arquitetura brutalista, com o destaque para seus traços estruturais, sempre iguais, mas montados de maneira diferente. Essa ilusão de modernidade é o espelho deformador da nossa sociedade onde tudo deve parecer diferente, mas é em essência é igual. Fim da história do lugar, fim dos espaços de sociabilidade tradicionais, substituídos por esse paraíso do consumo da vida num só lugar. A Highline citada por Rosário, ao menos, em que pese a destruição de um trecho, foi produto de ampla participação social, bem diferente dos projetos capitaneados pelo grande capital financeiro. Golden Lake e Cidade Nilo prometem o paraíso para os ricos, mas são, mais uma vez, espaços de notável segregação, é sempre para quem pode pagar.
A Casa do Futuro é um caso a parte, porque é mais da velha fetichização da tecnologia, produto de um capitalismo se desenvolve ao mesmo tempo em que torna nossa vida arcaica. Há diversas delas propostas no mercado, e um simples olhar sobre elas permite perceber que predomina a ideia do reino da tecnologia onde, na relação com objetos, ele nos faz dependentes das coisas, dos apps, do smartfone. Byung Chul Han já nos alertou para nos mantermos longe disso em sua obra Não Coisas (Editora Vozes, 2022). Segundo o filósofo coreano, faz parte da proposta que vê a implantação da inteligência artificial por tudo, uma forma de fazer o ser humano do futuro não voltado para o trabalho (homo faber), mas para o jogo (homo ludens). A casa em que os aparelhos são programados para assumir o trabalho sonha com um ser humano sem mãos. Para Han, isso acontece porque a mão é o órgão do trabalho e de ação e o dedo é o órgão da escolha. Na casa do futuro, só fazemos usos de nossos dedos, escolhemos ao invés de agir, e por isso apertamos botões para satisfazer nossas necessidades, uma vida, portanto, sem drama, mas vivida como um jogo.
As chamadas Casas do Futuro são mais uma página notável da fetichização da arquitetura, agora somos impedidos de abrir as cortinas com as próprias mãos e sentir o sol sobre o rosto, substituído pelo mecanismo que, a distância de um dedo, controla tudo e faz tudo. Para quê? Para que o cidadão fique mais disponível para o que realmente importa, olhar as telas da casa, consumir, imagem que lembra o papel dado aos seres humanos no filme Matriz, o de ser a bateria de um sistema. Se os arquitetos criam ou fantasmam apartamentos inteligentes é porque, no íntimo, não acreditam na inteligência e sucumbem ao peso de uma inteligência monstruosa e inútil. Nesta casa, o ato de fazer as coisas com as mãos, nosso maior signo de civilidade, é continuamente adiado: tudo o que fazia a rotina de um lar é adiado. Ficaremos de agora em diante, amarrados no assento vendo nosso sistema digital, o streaming. Por acaso somos deficientes motores? Talvez tais arquitetos acreditem que somos deficientes cerebrais. Voilà, livre de tudo ao redor, você está disponível para assistir TV e as propagandas que a acompanham. O capitalismo vence sempre. Destas propostas, concordamos com Rosário de que a Casa do Futuro de Betina Gomes é a que mais se aproxima de ideais de sustentabilidade. Resta saber se o preço de 580 mil por exemplar de 32 metros é uma boa opção para projetos de habitação popular governamentais.
Eu prefiro a casa na árvore. Com o mundo que está aí, sou um pessimista. É que sonhar com a Porto Alegre do futuro para mim é sonhar com uma cidade mais humana e não tecnológica, que valoriza seu patrimônio e não o destrói para a construção de grandes empreendimentos. Principalmente arranha-céus.
*Jorge Barcellos é Historiador, Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores)