Devemos uma das mais importantes descobertas da medicina a um ato falho.
Quando retornou da Primeira Guerra Mundial, o médico Alexander Fleming (foto da capa/Wikipedia) se viu tomado pelo anseio de encontrar a cura para infecções como aquelas das feridas dos soldados em campo de batalha.
Passou, então, a cultivar em laboratório e estudar a bactéria que provocava as tais infecções, a Staphylococcus aureus.
Certa vez, saiu em férias e esqueceu de acondicionar os frascos em que guardava as culturas da bactéria, o que as manteve expostas ao ar e à umidade. Ao retornar de viagem, Fleming percebeu que havia mofo sobre os frascos, supondo então que seu cultivo tinha ido por água abaixo.
Qual não foi a sua surpresa, entretanto, ao perceber que em torno do bolor a Staphylococcus aureus havia sido inativada, ou seja, que aquele fungo produzido pelo mofo, chamado de Penicillium notatum, tinha a capacidade de erradicar a bactéria.
Pesquisas posteriores isolaram a substância secretada pelo fungo e ela passou a ser administrada em pacientes com infecções a partir da década de 1940.
Estava criada a penicilina, o primeiro antibiótico da história.
Ou seja, caso o Dr. Fleming não tivesse esquecido de vedar os frascos em que cultivava a Staphylococcus aureus, talvez muitas e muitas vidas não poderiam ter sido salvas. A invenção do antibiótico se deveu a um deslize, a um erro.
Esta é apenas uma das tantas e tantas histórias de grandes descobertas que se originaram de uma falha, de um lapso, de um engano.
Se a sabedoria popular costuma dizer que “errar é humano” de forma a amenizar a nossa culpa quando fazemos algo fora do esperado, também creio que este ditado possa ser lido de forma ainda mais contundente: podemos pensar que aquilo que define o ser humano é a sua disposição ao erro.
Um computador, por exemplo, não erra. Se eu apertar o tecla ENTER no meu teclado, o cursor do meu editor de texto necessariamente vai para a linha seguinte. Não há condições para que isso não aconteça. É uma programação sem subjetividade.
Inclusive tendemos a atribuir características e vontades às máquinas quando elas não correspondem ao que era esperado: a impressora que não funciona justamente naquele dia em que você mais precisava, ou o carro que não dá partida quando você já estava atrasado.
Como se a máquina quisesse ou desejasse algo (não imprimir o documento importante ou não levar você até o trabalho). Mas aí, na verdade, não se trata de um desvario da vontade, mas de uma peça estragada.
A questão é que nós, humanos, não somos assim. Ou pelo menos não deveríamos ser.
É neste sentido que uma das grandes revoluções que Freud provocou no nosso entendimento a respeito do humano foi mostrar como nós falamos bem mais do que imaginamos e, mais ainda, que aquilo que nos é mais íntimo e verdadeiro aparece justamente quando algo nos escapa.
Uma troca de palavras, um esquecimento, uma piada despretensiosa, um sonho, tudo isso são caminhos para sabermos algo de nosso desejo e nossos anseios, especialmente aqueles que nem sabíamos que estavam ali.
Uma inteligência artificial, como o ultimamente tão falado ChatGPT, não consegue errar. E, com isso, não é capaz de produzir nada realmente novo no mundo.
O que estas ditas inteligências fazem é tão somente coletar informações já existentes e organizá-las de forma coerente. Em alguns casos, como o do ChatGPT, de forma assombrosamente coerente, o que tem despertado até mesmo um certo temor.
Após a divulgação da ferramenta, tem sido comum a pergunta: seremos substituídos por estas inteligências artificiais?
Ainda que eu entenda que este é um questionamento importante do ponto de vista técnico e, sobretudo, ético, creio que acabamos deixando de lado uma nuance que talvez seja ainda mais relevante: se nós temos medo de sermos substituídos por um algoritmo que só reorganiza informações já existentes, talvez este pavor tenha mais a ver com a forma como nós já nos vemos do que com alguma tecnologia nova.
Ou seja: não é tão assustador que uma máquina possa mimetizar o pensamento humano, mas sim o contrário, que estejamos cada vez mais vendo pessoas com comportamentos robotizados.
Rotinas milimetricamente programadas, emoções artificialmente moduladas, desejos mercadologicamente definidos, paixões ciberneticamente mediadas, alimentos medicamente consumidos, e assim vai.
E pior: muitas práticas atuais em saúde mental partem do pressuposto de que o psiquismo humano funciona como um software instalado em um hardware que pode ser programado e reprogramado. Muitas destas vertentes de cuidado até têm uma boa intenção mas, ao não se questionarem pelos seus fundamentos, acabam por reproduzir essa fantasia de homem-máquina, o que acaba por equiparar o tratamento clínico a uma adaptação ao ideais alienantes da cultura.
Neste sentido, o ChatGPT faria as vezes de um humano melhorado, deixando de lado justamente o traço que nos distingue das máquinas: a suscetibilidade ao erro.
Se lá atrás o Dr. Fleming não tivesse se atrapalhado e deixado abertos os frascos com Staphylococcus aureus, talvez até hoje muitos morreríamos por simples infecções. Sua contribuição à medicina foi fruto de sua frágil falha e por isso mesmo criativa humanidade.
Talvez as plataformas como o Chat GPT nos assustem não por serem disruptivas e inovadoras, mas por aproximarem uma lupa sobre a forma como a lógica neoliberal produz pensamentos e desejos cada vez mais pasteurizados, vidas organizadas em torno de um algoritmo asséptico que exclui toda forma de subjetividade, uma ideologia cujo horizonte é a robotização do humano.