A cada mil lágrimas sai um milagre
Itamar Assumpção
Nem sempre as ideias são as lâmpadas automáticas que os quadrinhos e os desenhos animados representam há tanto tempo. Muitas vezes, precisamos de algumas velas antes de chegar na tal lâmpada. Assim foi com o próprio Thomas Edison, que, além de inventor, era um obstinado.
Há algum tempo, penso em escrever sobre crianças desaparecidas. É um tema duríssimo cuja falta de visibilidade midiática e de enfrentamento estatal me irrita profundamente. Irritada, mais difícil é cumprir com o que me proponho, então, vou levando para mais adiante e a ideia fica em estado de vigília, ou seja, parada. Mas, hoje, não! Com minha vela na mão, me inspiro nas mais de mil tentativas de Edison para melhorar a lâmpada. Inspiro-me literalmente também, porque o tema pede fôlego, ainda que para poucas linhas.
Tempos atrás, uma pessoa amada me relatou uma tentativa de rapto de um de seus filhos numa grande rede de supermercados de Porto Alegre. Repassei mentalmente algumas vezes aquele relato. Era completamente coeso, ademais minha amiga ser uma pessoa sensível, arguta e lúcida. Porém, como qualquer humana, teve seus dois segundos de lapso diante das prateleiras. A sorte é que o gurizinho estava atento e não deu conversa para a estranha que o convidou a ir à sua casa – uma senhora já com alguma idade, acompanhada de uma menininha e um carrinho de compras vazio. Ao contrário e, possivelmente, por já estar orientado, correu e contou rapidamente à sua mãe que ainda conseguiu divisar ao longe aquela mulher. Quando minha amiga foi alertar os seguranças, estes viram nas câmeras que a senhora e a criança haviam ido embora sem comprar nada.
Tenho certa vergonha de ter repassado o relato da minha amiga, assim, como quem não quer acreditar. E, realmente, não queria. Mantemos um estado mental de Disneylândia que serve para levar a vida com certa suavidade. Ficamos um pouco inconscientes da fúria do mundo para conseguir sair de casa sem maiores sobressaltos. Nunca queremos ver e admitir que estas coisas acontecem, até que algum dia elas simplesmente acontecem. Com qualquer um/a.
Dados oficiais indicam o desaparecimento de 50 mil crianças no Brasil todos os anos. Destas, somente 10 a 15% são encontradas. Entre os motivos, a nata da desumanidade: trabalho escravo, exploração sexual, tráfico de órgãos, adoção ilegal etc. Ainda hoje, muitos familiares pensam que devem esperar 24h para avisar à polícia e isto também agrava o problema. A subnotificação dos encontrados tampouco auxilia neste enfrentamento.
Lamento, além disso, que este seja um problema sobretudo para nós mulheres. A paternidade ainda é coisa de outro mundo para muitos homens, então é comum que a obstinação para o reencontro com a criança também fique com a mulher. Acredito que, se a paternidade e o lar fossem mais dignamente compartilhados, a situação desses números seria bem menos drástica. Em 2020, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha destacou que, sobretudo as mulheres, são aquelas que não desistem das buscas de seus familiares desaparecidos, não somente filhos, mas familiares em geral.
No plano psíquico, sabemos como é lancinante a dor de não poder dar um fechamento. Atos fúnebres têm sua relevância justamente por isso. Não poder ter o direito de, ao menos, enterrar um filho faz de muitas mulheres verdadeiras Antígonas que vão às últimas consequências para velar ou, quem sabe, encontrar ainda alguma luz destes amores.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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