Em minha ultima temporada de férias de verão, peguei um dia de praia onde ocorreu um fenômeno que na minha infância acontecia bastante e eu adorava vivenciar. Por alguma razão, o mar, ao retroceder da costa, formava uma onda no sentido contrário e se chocava com as ondas que de costume vem do fundo do oceano. Pelo menos onde cresci, sempre chamávamos esse encontro de ondas em sentidos opostos de pororoca. Anos depois vim a descobrir que a pororoca original é na verdade o encontro das águas de um rio com o oceano. De qualquer forma, ao rever esse fenômeno acontecendo nas águas do mar da praia onde estava, lembrei de como eu e minhas amigas adorávamos correr para estar exatamente entre as duas ondas no momento desse encontro, que espirrava água para o alto e trazia muita diversão e estranhamento. Pororoca em Tupi quer dizer “estrondo”, e é possível imaginar o barulho que esse encontro de oceano com o rio causava e o estranhamento que gerava nos índios quando nomearam assim esse acontecimento natural.
Nesse dia das pororocas na praia, sentada em meu guarda sol observando o mar e as pessoas que por ali transitavam, observei um senhor de idade mais avançada caminhando em direção ao mar. Ele dava passinhos curtos, em um determinado momento senti vontade de levantar e verificar se ele precisava de alguma assistência, mas temi ser inconveniente e até ofende-lo com minha oferta. Quem sabe essa pequena caminhada ainda seria a afirmação de sua autonomia frente às limitações impostas pela passagem do tempo. Ele caminhava devagar, em alguns momentos o pé que se postava à frente acabava voltando para trás, cambaleante. Era como uma criança que, ao aprender a caminhar e querer se dirigir ao mar na praia, cai de bunda no chão com sua fralda fofa que alivia o impacto e a faz alegremente levantar novamente e seguir tentando enquanto é impossível a quem olha não se emocionar e encantar com esse tipo de cena. Mas ele era um velho bebê.
Pensei nessa passagem rápida, quase meteórica, do cambalear bebê ao cambalear idoso. Lembrei do filme do Benjamin Button e percebi que estava com uma pororoca do tempo acontecendo diante dos meus olhos. O bebê cambaleante há de nos revisitar, se tivermos a sorte de alcançar uma idade avançada que novamente nos tire o equilíbrio e a força plena. Ele finalmente chegou à beira e deixou as ondas molharem seus pés. Eu fiquei ali, da minha cadeira, olhando aquele estrondo todo. Parecia realmente um filme, mas sem a música instrumental que estaria tocando ao fundo e emocionando os espectadores.
A vida não é um filme, o roteiro por vezes me parece bem clichê e sem grandes plot twists ou protagonistas e antagonistas complexos o suficiente. Apesar disso, eu acredito que a vida em algum grau imita a arte ou vice versa. Tenho trabalhado em algumas propostas de estudo em minhas duas áreas de interesse/paixão que é a Psicanálise e a literatura/arte. Freud escreveu vários textos buscando compreender como os poetas ou músicos, através de suas obras, teriam o alcance mental que outras pessoas “comuns” jamais alcançariam. Eu, em minhas humildes ideias de estudar sobre, empaco sempre diante da crescente onda de palestras e cursos que vem surgindo com essa temática, justamente porque entendo que as pessoas tem percebido de verdade que a vida sem arte e poesia seria intolerável e já existem tantos colegas – dos bons aos nem tanto – empreendendo essa tentativa.
Porque não basta saber; queremos entender o fenômeno psicanaliticamente – o que é bonito e perigoso. Não podemos reduzir a experiência artística e epifânica de um filme, de uma música ou um poema ao fenômeno psíquico que se sucede ou então ao vazio que ele ou ela pretensamente se dispõe a preencher. A arte boa não tem serventia alguma, não responde (quase) nada. Ainda assim, talvez eu seja mais uma que também ama relacionar os furos psíquicos que nos compõe com o estrondo que uma obra de arte pode causar – mais uma pororoca – em nossas vidas tantas vezes ridículas e banais. Nossa incompletude primordial pede sempre mais gasolina, e dirigimos até ficarmos velhos cambaleantes como bebês em direção ao mar. Que esse entre passos seja recheado de estrondos e buenas ondas pelo caminho. Com arte ou sem arte, a natureza faz seu trabalho imponderável.
Foto da Capa: Gerada no Freepik Pikaso