Há um tipo de água de rio tão fluida, de textura finíssima, como inexistente, de uma transparência no limite do real, que, ao mergulharmos, parece termos entrado dentro de um cristal. A sensação de portal é instantânea. Sem peso, em silêncio quase absoluto, flutuamos com peixes robustos, que deslizam suaves e longas algas, que dançam harmoniosamente. A correnteza imperceptível nos leva pelas curvas do rio e vamos gradualmente descolando da superfície, cada vez mais entranhados na água, ondulando. Tive essa experiência em um passeio de flutuação em Bonito, Mato Grosso do Sul, que acabou se revelando uma imersão em outro mundo. Delicado, profundo, imaterial. Retorno ao Paraíso, à fonte.
Recorro novamente à escritora e psicoterapeuta junguiana Raïssa Cavalcanti, de quem falei na coluna da semana passada: “O paraíso simboliza a memória e a nostalgia de um estado de unidade e totalidade que foi perdido com o nascimento da consciência egóica. O arquétipo do paraíso se mantém vivo na psique coletiva, representando a aspiração humana de volta ao Centro, à sacralidade da vida. O homem deseja, no seu íntimo, a superação dos sentimentos de limitação e de separação, almeja o regresso à condição anterior à queda, a volta ao sentimento de unidade e de harmonia com o Universo, com o Self. O homem anseia pela cura da ferida da separação e deseja ardentemente voltar ao paraíso, à fonte, ao estado de unidade e plenitude perdida.” (Os símbolos do centro, Editora Perspectiva, 2008).
Fiz esta viagem a Bonito em 2018, com meu filho Cássio. É uma região com grutas incríveis, cachoeiras e rios escondidos dentro das matas, que nos transportam a outra dimensão. Há várias opções de flutuação em reservas ecológicas e se alcança os rios através de caminhadas por trilhas em mata ciliar. O percurso que fizemos no Aquário Natural foi de aproximadamente 900 metros, passando por três rios: o Baía Bonita, o Formoso e o Formosinho. Não pisamos uma única vez no fundo dos rios, que são propositadamente preservados, intocáveis, imaculados. Um pequeno barco acompanha o trajeto, caso se precise de algum apoio, mas sequer notamos sua presença, tal a imersão naquelas águas.
Rios têm essa capacidade de nos envolver, com suas sombras e murmúrios, sua ondulação e frescor. Quando eu era criança, tomávamos banhos de rio em Dom Pedrito, campanha do Rio Grande do Sul, durante as férias de verão. É uma lembrança tão mágica e impregnada em minha alma, que emergiu com toda a força em Bonito e me transportou ao Paraíso. No Gênesis, o Sopro ou Espírito de Deus pairava sobre as águas. Sinto este frêmito nos rios. Os rios silenciosos que correm para o mar e nos religam ao Paraíso, ao Universo. Para mim, uma das mais belas expressões disso está na voz de Elvis Presley cantando Unchained Melody (ouça, é tudo):
(…) I need your love
God, spread your love to me
Lonely rivers
Flow to the sea, to the sea
To the open arms of the sea
Lonely rivers cry
Wait for me, wait for me
I’m coming home
Wait for me (…)
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Aquário Natural de Bonito / Divulgação